Areazero
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21 de novembro de 2015
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14:34

Abraço à Casa Elétrica defende restauração de prédio que abrigou 4ª fabricante de discos do mundo

Por
Luís Gomes
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19/11/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Casa Elétrica, antiga fábrica de vinil. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Prédio que abriu primeira fabricante de discos do Brasil está quase em ruínas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

“O desconhecimento da história está fazendo com o que o prédio esteja ruindo”, diz Ricardo Eckert sobre a Casa Elétrica, prédio histórico localizado na Av. Sergipe, no Bairro Glória, que abrigou a sede da quarta fabricante mundial de discos de 78 Rotações, os 78 RPM.

Para ajudar a popularizar a história da fábrica, criada pelo italiano Savério Leonetti e que operou entre 1914 e 1923, um grupo no Facebook chamado Amigos da Casa Elétrica, coordenado por Eckert, está realizando o evento “Abraço à Casa Elétrica” neste sábado, a partir das 17h.  “Só na hora que a população conhecer essa história, ela vai fazer a defesa”.

A Casa Elétrica, fundada em 1º de agosto de 1914 no nº 220 da Av. Sergipe, foi a quarta empresa fabricante de discos do mundo e pioneira na América Latina. Antes dela, só existiam as empresas americanas Victor Talking Machine Company – posteriormente RCA Victor – e Columbia Records e a alemã Odeon, que possuía uma fábrica no Rio de Janeiro.

“A Casa Elétrica tem mais de 100 anos. Apagaram toda a história do cara. Se não fosse o Paixão Cortes recuperar a história na década de 1970, talvez a gente nem soubesse dela”, diz Eckert.

Casa Elétrica, na verdade, é o nome que o local passou a receber após ser “redescoberto” por Paixão Cortes, que conduziu uma pesquisa sobre o espaço desde os anos 1970 e a contou no livro “Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas”, de 1984 . “No início, era Leonetti Companhia LTDA, depois Savério Leonetti LMTD, por último muda para Fábrica Phonográfica União”, explica Eckert.

Eckert lembra que, na época da chegada de Leonetti, em 1908, Porto Alegre era uma cidade com um cenário musical vibrante. “Na rua Voluntários da Pátria, existiam 32 cabarés com música ao vivo. Como cada casa tinha quatro ou cinco músicos, isso representa cerca de 120 músicos. Tinha mais músicos ali do que na Cidade Baixa hoje”, diz.

Segundo Eckert, a história da Casa Elétrica começa em 1909, quando Leonetti compra uma chácara na Av. Sergipe. “Em 1911 ele constrói o primeiro prédio. Depois um anexo, em 1913”.

19/11/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Casa Elétrica, antiga fábrica de vinil. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Prédio da Casa Elétrica já se mistura com a vegetação no local| Foto: Guilherme Santos/Sul21

No mesmo ano, Leonetti, que atuava desde 1909 com o comércio de lâmpadas e tinha uma loja chamada a “A Eléctrica” na Rua da Praia, atual Rua dos Andradas — de onde provavelmente veio o nome como o local é conhecido hoje –, compra uma máquina para gravar discos. Ainda assim, era preciso mandar prensar no Rio de Janeiro. Por isso, os primeiros 100 discos gravados na fábrica de Leonetti são enviados para serem prensados na capital fluminense, onde ficava a fábrica estrangeira. É apenas em 1914 que a fábrica de Leonetti adquire autonomia para fazer tudo.

Além de ser uma das pioneiras mundiais da indústria fonográfica, a Casa Elétrica tem importância por ter sido o local em que foram prensados os primeiros tangos da América Latina e sambas do Brasil, além de clássicos da música gaúcha, segundo Eckert. No total, cerca de 1,5 mil títulos foram gravados nos 10 anos de atividade da empresa, o que dá uma média de um a cada dois dias.

Naquela época, os discos argentinos eram gravados em Buenos Aires e enviados para a Alemanha para serem prensados na fábrica da empresa Odeon. No entanto, como a Alemanha sofreu um bloqueio naval durante a Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, proibida de exportar produtos até 1924, muitos artistas argentinos acabaram vindo para Porto Alegre gravar discos. O primeiro deles foi Francisco Canaro.

Em junho de 1915, ele gravou na Casa Elétrica a música El Chamuyo, que viria a ser o primeiro tango gravado e prensado da América Latina.

Entre os artistas gaúchos que gravaram na Casa Elétrica, Eckert destaca Moisés Mondadori, que gravou ali um dos ícones do folclore gaúcho, a música Boi Barroso, e Otávio Dutra, cuja música Felina, gravada na Casa Elétrica, vendeu mais de 40 mil discos, número impressionante para época, em que o gramofone era artigo de luxo. A efeito de comparação, Eckert diz que Gardel só conseguiu vender mais de 50 mil discos a partir dos anos 1920.

19/11/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Casa Elétrica, antiga fábrica de vinil. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Prédio foi construído a partir de 1913| Foto: Guilherme Santos/Sul21

Falência da Casa Elétrica

A Casa Elétrica operou até 1923. Eckert explica que a falência da empresa foi noticiada pelo jornal A Federação em janeiro de 1924. Contudo, a nota do jornal explica que o processo era retroativo a 12 de junho de 1923.

Não há uma “versão oficial” sobre o motivo da falência. Segundo Eckert, uma hipótese atribui ao fato de Leonetti ter sido “perdulário” e outra a uma suposta falta de matéria-prima provocada pela guerra. “Mas não tinha nenhuma grande guerra ocorrendo nessa época”, questiona.

A partir das leituras sobre o tema – ele diz estar lendo compulsivamente sobre a criação da indústria fonográfica -, o próprio Eckert tem uma versão sobre a falência da fábrica. Em sua pesquisa, ele descobriu que Leonetti abriu em Buenos Aires, em 1923, uma fábrica ao lado do empresário argentino Alfredo Amendola, que trabalhava com os principais nomes do tango à época, como o próprio Francisco Canario.

Em razão disso, e pelo fato de os equipamentos utilizados para gravar e prensar terem “desaparecido”, Eckert acredita que Leonetti deixou-se falir para abrir a fábrica na capital argentina.

A história desse período foi contada em um filme de ficção e em um documentário dirigidos por Gustavo Fogaça. O diretor lembra que, depois do fechamento da fábrica, o Rio Grande do Sul ficou 40 anos sem produzir discos. “Deixamos de ser o centro musical do Cone Sul”, diz.

Ele conta que a história da Casa Elétrica “caiu em seu colo” quando conheceu Geraldo Leonetti, sobrinho-neto do fundador da empresa, em 1998. “Ele me contou a história do tio-avô e eu falei: ‘isso dá um filme'”. A obra foi lançada em 2013.

19/11/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Casa Elétrica, antiga fábrica de vinil. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Depois da Casa Elétrica

Com a falência da fábrica de Leonetti, a casa que a abrigou foi a leilão em 1924, tornando-se uma residência familiar. Eckert diz que já conseguiu entrar em contato com parentes de pessoas que moraram no local nas décadas seguintes, mas todos alugavaam a propriedade e não se soube quem tinha comprado o terreno. Posteriormente, o local foi comprado pela empresa de instalações elétricas e telefones Camboim — a partir da década de 1970 já era dono do imóvel -, que derrubou dois anexos da casa – quase dois terços da estrutura original — e construiu um prédio com 26 salas no terreno. Com a falência da empresa, em 1996, o terreno passou a ser alugado para a transportadora Transsalla, que opera no local até hoje.

Em 1996, um movimento de intelectuais porto-alegrenses, liderados por Hardy Vedana — que escreveu um livro sobre o local chamado “A Eléctrica e os Discos Gaúcho, de 2006”–, inicia um movimento pelo tombamento da Casa Elétrica, o que é assinado pelo então prefeito Raul Pont (PT).

Contudo, desde então, nenhuma medida teria sido tomada para preservar o prédio. Os Amigos da Casa Elétrica temem que a estrutura centenária não tenha condições de resistir a um inverno de chuvas intensas, uma vez que o telhado estaria ruindo. “Caindo o telhado, caem toda as paredes internas”, diz Eckert.

Como o proprietário alega não ter condições de restaurar o prédio, a lei determina que caberia à Prefeitura realizar esta obra. Em 2011, o Ministério Público ajuizou uma ação para exigir que a prefeitura realizasse as obras necessárias. Em 2013, o Tribunal de Justiça condena o município a fazer esta restauração. A partir da condenação, a Prefeitura faz então um projeto para recuperar o prédio, que orça em R$ 1,3 milhão a obra.

19/11/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Casa Elétrica, antiga fábrica de vinil. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Abraço à Casa Elétrica

Amigos da Casa Elétrica é um grupo de Facebook criado ainda neste ano e que reúne 5,8 mil pessoas. Segundo Eckert, o interesse pela Casa Elétrica atrai pessoas de todas as partes do Brasil e do exterior, especialmente por colecionadores de discos 78 RPM, que era o tipo produzido no local. “Uma das pessoas que está no grupo é a filha de Leon Barg, que foi o maior colecionador de discos 78 RPM do mundo. Ele tinha 120 mil discos”, diz Eckert.

Neste sábado, eles realizam o “Abraço à Casa Elétrica”, evento que contará com shows de músicas e terá a exibição do filma “A Casa Elétrica”.

Segundo Eckert, o evento terá o objetivo de sensibilizar a Câmara de Vereadores e a Prefeitura de Porto Alegre para a necessidade de se incorporar no Orçamento municipal de 2016 uma previsão de verba para que seja feita a restauração do prédio, o que está previsto em uma emenda proposta pelo vereador Airto Ferronato (PSB).

Projeto existente prevê a restauração das cores originais da Casa Elétrica | Foto: Divulgação
Projeto existente prevê a restauração das cores originais da Casa Elétrica | Foto: Divulgação

Ferronato diz que a ideia para apresentar a emenda partiu de uma reunião da Comissão de Finanças da Câmara de Vereadores em que o próprio Eckert relatou aos parlamentares a situação em que o prédio se encontra e lhes contou um pouco da história da Casa Elétrica.

Por ser o relator do Orçamento Municipal para 2016, ele diz que coube a ele assumir a autoria da emenda, mas salienta que ela tem o respaldo de toda a Comissão de Finanças, o que aumentaria as chances de ela ser aprovada. Ele ainda salienta que não necessariamente precisaria se prever no Orçamento o volume de R$ 1,3 milhão para a restauração, mas sim uma quantia para abrir uma “janela de recurso” para que ela venha a ocorrer. “Tu destinar R$ 200 mil, R$ 300 mil em orçamento, já abre esta janela e a possibilidade de reforma”, disse.

Segundo Eckert, o grupo Amigos da Casa Elétrica defende que, após a restauração, ocorra a desapropriação do terreno e o local seja transformado em espaço cultural. “É uma coisa sem pé nem cabeça a Prefeitura restaurar e não desapropriar”, diz.

Apesar de ser favorável à restauração de Casa Elétrica, o diretor Gustavo Fogaça lembra que o prédio está em um terreno privado que pertence a uma família que não quer ceder o terreno e não teria sido chamada para discutir os planos futuros para o local. “A gente não vive em uma ditadura. Ninguém pode tirar os proprietários de lá”.

Confira mais fotos: 

19/11/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Casa Elétrica, antiga fábrica de vinil. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
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