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20 de outubro de 2015
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10:02

Encontro discute acolhimento e mobilizações da população em situação de rua

Por
Sul 21
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Foto: Guilherme Santos/Sul21
Discussão aconteceu no auditório do Prédio B da ESPM-Sul | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Com o objetivo de promover debates sobre as diversas opressões presentes na sociedade, um grupo de estudantes da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM)-Sul criou a Coletiva Identidades. No ano passado, o grupo realizou a primeira Semana da Diversidade da faculdade e, neste ano, voltou a proporcionar debates sobre desigualdades e direitos humanos. Com o lema “Todo ponto de vista é a vista de um ponto”, a segunda Semana defende que “Toda interpretação é política, carrega consigo a visão que é desenvolvida a partir do lugar social de quem olha”.

A partir desses conceitos, os estudantes formularam uma ampla programação, que começou nesta segunda-feira (19) e segue até a próxima sexta-feira (23), abordando temas como diversidade sexual, direito à moradia, transexualidade, arte de rua, cultura negra, ditadura e, neste primeiro dia, questões referentes à população em situação de rua.

Durante cerca de duas horas, a conversa transcorreu entre as jornalistas formadas pela instituição Tatiana Reckziegel e Desirée Ferreira; o integrante do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) Anderson Ferreira e a diretora da Escola Municipal Porto Alegre, Jacqueline Junker.

Invisíveis 

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Desirée (E) e Tatiana falaram de seu projeto, desenvolvido ano passado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

As ex-estudantes relataram sua experiência com o projeto Mulheres Invisíveis, resultado de seu trabalho de conclusão de curso em Jornalismo, que consistiu em uma grande reportagem multimídia sobre a vida de quatro mulheres em situação de rua. A partir de visitas ao Albergue Municipal, em que conversaram com diversos frequentadores, tiveram a ideia de afunilar o trabalho para tratar especificamente de mulheres. “As mulheres estão em uma situação muito diferente, pois os homens são a maioria [na rua]. Então dentro dessa minoria, tem outra minoria, que são as mulheres, que além da fragilidade social ainda passam violências específicas”, explicou Tatiana.

A realização do trabalho foi importante para mudar as concepções das jovens sobre a realidade das pessoas em situação de rua, levando-se em conta que, tendo sido criada em famílias de classe média, não haviam tido muito contato com essa população anteriormente. “Claro que tínhamos um estereótipo sobre essas pessoas e suas trajetórias, e com essa oportunidade começamos um processo de desconstrução”, afirmou. Ela criticou ainda o fato dessa população ser tratada pela mídia e grande parte da sociedade como “um problema social”, enquanto na realidade “são pessoas como nós, e devemos entender suas escolhas e sua situação”.

Michele foi uma das mulheres entrevistadas pelas jornalistas | Foto: Desirée Ferreira/ Projeto Mulheres Invisíveis
Michele foi uma das mulheres entrevistadas pelas jornalistas | Foto: Desirée Ferreira/ Projeto Mulheres Invisíveis

Depois de fazer entrevistas no Albergue, elas foram para a rua procurar histórias, segundo contou Desirée. Conheceram então as quatro protagonistas do trabalho: Michele, Elaci, Mercedes e Valquíria. “Elas todas fugiram muito do estereótipo que a gente tinha sobre pessoas em situação de rua. Sempre buscamos fazer imagens que as mostrassem sem esse estereótipo e como elas queriam ser mostradas. Foi uma experiência que nos ensinou muito”, relatou ela, que é fotógrafa.

Elas entenderam, por exemplo, porque muitas pessoas em situação de rua não passam a noite em albergues: muitas vezes não há vagas e, além disso, não é possível levar todos os pertences para os locais. “Se a pessoa tem um colchão, ela não pode levar ele pro albergue. Daí se desfaz dele, dorme no albergue, mas se depois não conseguir mais vaga, já não tem mais o colchão também”, relatou Tatiana.

Dignidade pela educação

Uma das entrevistadas, Valquíria, vivia ao lado da Câmara Municipal, em uma comunidade de 15 pessoas, que no entanto não são fixas, mas sim mudam com o passar dos dias. Ela frequentava a escola EPA e, conforme relata Tatiana, tinha muito orgulho disso. “Ela sentia que aquilo construía a dignidade dela, nos mostrava cadernos caprichosos”, afirmou.

Ao ouvir a fala da diretora da escola, na mesma noite, essa preocupação com a construção da dignidade dos estudantes fica explícita. Jacqueline, além de lecionar e dirigir a escola, articula uma instituição preocupada com acolhimento, integração, respeito às histórias de vida e aceitação da diversidade que diferencia a EPA. Apesar de aberta à comunidade, a escola prioriza pessoas em situação de rua e de vulnerabilidade.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
A diretora da EPA falou do trabalho de acolhimento realizado pela instituição | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Nós aprendemos a escutá-los, ouvir, acolher as histórias de vida, o sorriso, a dor. Eles não são meros sobreviventes, eles vivem e conseguem viver na contradição. A gente trabalha com projeto de vida e não tem que ser esse estereotipado que todo mundo tem”, afirmou. Jacqueline acredita que a integração entre serviços de educação, saúde e assistência social é essencial ao se tratar dessa população. “A escola oferece banho, e  tem gente que diz que isso cabe à assistência social fazer. Se a pessoa não conseguiu ou não quer abrigagem, tem que ter a mínima condição de estar numa sala de aula”, exemplifica. Para ela, a educação é também baseada na premissa de que “poder cuidar de mim é uma forma de aprender a pensar no mundo em que eu vivo”.

A diretora aponta que as escolas são espaços muito tradicionais em geral, e que a EPA procura fugir um pouco dessa estrutura rígida. “Na teoria, tem vaga para todo mundo na rede [pública de educação]. Mas ter vaga não é acolher, entender, trazer a vida para dentro da escola. Precisa aceitar esse diverso e isso não é só abrir vaga. É estrutura, olhar, acolher este outro que até então não tinha como ou não conseguiu permanecer na escola”.

Mesmo com tantos diferenciais, a EPA está ameaçada de fechamento. A Prefeitura de Porto Alegre decidiu, há um ano, que a escola teria suas atividades encerradas para que o espaço onde ela se encontra dê lugar a uma escola de educação infantil. Desde então, o MNPR e a comunidade escolar têm travado discussões, protestos e audiências para conseguir o direito de manter o local. Atualmente, vigora uma decisão judicial que proíbe o poder público de fechar o espaço. “Apesar de haver vagas, o Ensino de Jovens e Adultos (EJA) em Porto Alegre é praticamente todo de noite. Então a população em situação de rua teria que optar por dormir em albergue ou estudar”, destaca.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Desde que o fechamento da escola foi anunciado, diversos protestos pedem sua permanência| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Movimento da População de Rua

Representando o MNPR, Anderson, que morou na rua durante dez anos, falou da origem do movimento e das batalhas que já foram travas até aqui. Ele foi um dos fundadores do braço gaúcho do MNPR e, agora, é também ator de teatro de rua e educador social que trabalha com redução de danos. A organização por parte da população de rua começou em São Paulo, após o famoso Massacre da Praça da Sé, em 2003, que feriu 15 pessoas que dormiam no local, matando oito.

No ano seguinte, conversas começaram na capital paulista e em Belo Horizonte, quando a população em situação de rua “decidiu ir para a luta e começar a discutir, construir uma política nacional”, contou Anderson. Cerca de quatro anos depois, a mobilização chegou a Porto Alegre.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Anderson foi um dos fundadores do braço gaúcho do MNPR | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em 2007, o atual Centro Pop — na época, chamado Casa de Convivência — não tinha banho quente para se tomar no inverno, o que se tornou uma demanda dos frequentadores. “Para algumas pessoas, um banho pode ser uma coisa do cotidiano, mas a população de rua não tem direito nem a isso. Começamos a querer questionar. Na época, alguns trabalhadores que entendiam que era possível uma organização política incentivaram um grupo a fundar aqui uma base do MNPR”, relatou.

Quando o Massacre da Sé completou cinco anos, foi marcada a fundação do grupo em Porto Alegre. Em Brasília, um ano depois, o então presidente Lula lançou a Política Nacional para População em Situação de Rua, mas até hoje “não se consegue ter acesso aos direitos que a grande maioria da população tem”, explicou Anderson. O movimento não é relacionado a nenhum partido político,segundo afirmaram ele e Jacqueline, que também participa da organização, mas conversa com grupos envolvidos em assuntos semelhantes, como a luta por moradia e reforma urbana.

Confira a programação para os próximos dias da Semana da Diversidade:

◣Terça-feira 20/10◥

> 9h – O lado sombrio do estado brasileiro – Auditório Prédio B
DITADURA MILITAR | DEMOCRACIA | RESISTÊNCIA
– Ignez Maria Serpa Ramminger – Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça do RS
– Raul Ellwanger – Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça do RS

> 14h – Cine-debate sobre o filme “Mais Náufragos que navegantes” – Auditório Prédio C
AMÉRICA LATINA | DIREITOS HUMANOS | INTEGRAÇÃO
– Jair Lima Krischke – presidente do Movimento de Justiça e Diretos Humanos

> 19h30 – Corpo negro caído no chão – Auditório Prédio B
GENOCÍDIO NEGRO | RACISMO | VIOLÊNCIA POLICIAL
– Onir Araújo – Frente Quilombola do Rio Grande do Sul
– Ubirajara Toledo – IACOREQ

◣Quarta-feira 21/10◥

> 14h – Cidade que exclui – Cine-debate dos filmes “Leva” e “O que é nosso – Reclaiming the jungle” – Auditório Prédio C
DIREITO À CIDADE | OCUPAÇÕES | RESISTÊNCIA
– Ceniriani Vargas da Silva – Coordenadora do Movimento Nacional de Luta pela Moradia- Porto Alegre
– Mateus Miranda – estudante de Ciências Socias pela UFRGS e integrante do Coletivo Arruaça

> 19h30 – Quem tem o poder? – Auditório Prédio B
PATRIARCADO | PROSTITUIÇÃO | PORNOGRAFIA
– Júlia Franz – artes combinadas na Universidade de Buenos Aires
– Luelen Gemelli – Feminista, ativista e profissional do sexo
– Negra Jaque – Música de Hip-Hop

◣Quinta-feira 22/10◥

> 9h – Cultura e apropriação – Auditório Prédio B
INDÚSTRIA CULTURAL | ETNIAS | MARGINALIZAÇÃO
– Ana Langone – KUNTU
– Nina Fola – Africanamente

> 14h – Dizem os muros – Auditório Prédio C
PIXO | ARTE | VOZ
– Fábio Eros – Artista visual e grafiteiro
– Filipe – Harp Brasil

> 19h30 – (Trans)vivências – Auditório Prédio B
GÊNERO | TRANSEXUALIDADE | PROTAGONISMO
– Adriana Souza – Pós graduada em Filosofia Política pela FAFIMC e Ditática da Língua Portuguesa pela UCB
– Bernardo Dal Pubel – Fotógrafo, Artista e Transativista
– Eric Seger – Estudante de Educação Física da UFRGS, bolsista do Nupsex e do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT)

◣Sexta-feira 23/10◥

> 9h – Nosso Norte é o Sul – Auditório Prédio B
COLONIALISMO | IMPERIALISMO | NOVAS PERSPECTIVAS
– Paula Grassi – Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação da Unisinos
– José Carlos dos Anjos – Professor Dr. de Ciências Sociais da UFRGS
– Marcos Bohner – Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná

> 14h – Nenhum ser humano é ilegal – Auditório Prédio C
REFUGIADOS | IMIGRANTES | INCLUSÃO
– Luiza Corrêa de Magalhães Dutra – Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados-SAJU/UFRGS
– Marina Soares Scomazzon – Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados – SAJU/UFRGS
– Alix Georges – Haitiano
– Isam Ahmad Issa – Comitê em Defesa do Direito do Retorno e ex-professor da Universidade de Bágda
– Nader Baja – Centro Cultural Palestino do Rio Grande do Sul
– Mor Ndiaye – Senegalês

> 19h30 – Para além da heteronormatividade – Auditório Prédio B
SEXUALIDADE | GÊNERO | NOVAS ESTÉTICAS
– Fernanda Nascimento – Gênero, Mídia e Sexualidade
– Paula Sandrine – Dra. em Antropologia Social pela UFRGS
– Célio Golin – Fundador do Nuances – grupo pela livre expressão sexual


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