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19 de julho de 2015
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22:00

Sem informação e sem entender a língua, imigrantes têm direitos trabalhistas desrespeitados no RS

Por
Luís Gomes
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Imigrantes haitianos estão trabalhando em diversos canteiros de obras em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Imigrantes haitianos estão trabalhando em diversos canteiros de obras em Porto Alegre  | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Desde 2012, o Brasil tem recebido muitos estrangeiros que vêm ao País em busca trabalho e para ajudar suas famílias, enquanto muitas delas permanecem em países como Haiti e Senegal . Contudo, ao chegarem, se deparam com língua, cultura e leis trabalhistas diferentes. Muitos deles acabam assinando seus primeiros contratos sem entender o que está escrito e empresas se aproveitam dessa situação para não cumprir plenamente com seus encargos trabalhistas.

Um grande contingente de imigrantes chegou ao Rio Grande no Sul nos últimos anos e se estabeleceu, principalmente, na região de Caxias do Sul e na Grande Porto Alegre. Apesar de muitos deles terem cursado ou se graduado na Educação Superior em seus países, aqui eles acabam encontrando apenas trabalho braçal. Como precisam sobreviver e, em muitos casos, enviar dinheiro para as famílias, acabam aceitando. O problema ocorre quando, sem saber, aceitam também conviver com irregularidades trabalhistas.

“A gente tem recebido muitas denúncias de empresas que fazem uso do pouco conhecimento que eles (imigrantes) têm da língua para explorar esse trabalho sem fazer o pagamento de direitos”, diz Patrícia Sanfelice, procuradora do Ministério Público do Trabalho que lida com casos de imigração no Estado. Ela salienta que o Ministério Público chegou a receber denúncias de que imigrantes teriam sido submetidos a trabalho escravo, mas isto não foi confirmado no RS.

Sanfelice diz que empresários também utilizam o excedente de mão de obra provocado pela chegada de imigrantes para pressionar os trabalhadores brasileiros. “Já soube, não em investigação, mas em conversas com imigrantes e com sindicatos, que muitos empresários estão utilizando essa condição de ter um excedente de mão de obra para atemorizar os trabalhadores que vão fazer um questionamento de melhoria. Dizem: ‘se não quiser do jeito que está, vou contratar um haitiano que vai aceitar essa situação'”, afirma.

A procuradora explica que essa pressão é totalmente ilegal e que os imigrantes que estão legalizados no Brasil e contam com carteira de trabalho devem receber os mesmos direitos devidos aos trabalhadores brasileiros. Além disso, as regras de equiparação salarial também obrigam as empresas a pagar o mesmo valor para estrangeiros e brasileiros que realizam a mesma função.

Roosvens Marc chegou a Porto Alegre em 2013, agora ele trabalha como fiscal do trabalho da Sticc | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Roosvens Marc chegou a Porto Alegre em 2013, agora ele trabalha como fiscal do trabalho da Sticc | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

De vítima a fiscal

Roosvens Elassi Marc, 29 anos, é um dos imigrantes que se mudaram para o Brasil recentemente. Morador da cidade de Gonaives, no Haiti, chegou em Porto Alegre em dezembro de 2013, atraído por um amigo que trabalhava na construção civil. Apesar de ter cursado dois anos de Engenharia Civil em seu país, ele conseguiu emprego apenas como auxiliar de produção na construção civil.

Segundo ele, o único caso de desrespeito de direitos trabalhistas que vivenciou ocorreu quando uma empresa tentou lhe pagar menos horas do que aquelas que tinha trabalhado. “Eu deveria ter recebido R$ 880, mas o patrão queria pagar apenas R$ 800”, disse Marc, em um português com forte sotaque, mas totalmente compreensível. Com ajuda do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de Porto Alegre (Sticc), Marc conseguiu reaver os R$ 80 que lhes eram devidos.

Curiosamente, Marc agora se encontra do outro lado dessa rede de apoio ao trabalhador migrante. Desde o início de junho, atua como fiscal de obras do departamento de fiscalização do Sticc. Na função, ele faz fiscalização de obras e atende trabalhadores, estrangeiros ou brasileiros, que fazem denúncias ou vão ao sindicato em buscas de informações sobre direitos trabalhistas.

“Recebo denúncias de patrões que não querem pagar direito os trabalhadores haitiano, senegaleses, angolanos, etc. Denúncia de pagamentos atrasados, irregularidade de higiene, falta de alojamento e alimentação para os trabalhadores”, diz Marc, salientando que muitos canteiros não têm condições de alojamento e alimentação adequadas para os imigrantes.

Segundo representantes do Sticc, o trabalho de Marc tem sido importante para a integração de outros imigrantes.

Imigrantes relutam em acionar a Justiça

O advogado trabalhista Ricardo Belinzoni faz atendimento, desde abril do ano passado, pro bono (na tradução literal, advocacia para o bem, ou exercida de forma voluntária) de imigrantes que enfrentam problemas trabalhistas. Ele diz que passou a prestar esse serviço após conhecer o trabalho da irmã Maria do Carmo Gonçalves, do Centro de Auxílio ao Migrante (CAM), de Caxias do Sul.

Belinzoni afirma que, por conta das dificuldades culturais e de língua, muitos empresários se aproveitam para não pagar direitos trabalhistas devidos aos imigrantes, especialmente nas indústrias de abate de aves e carnes de Caxias do Sul. “Eles não sabem quantas horas extras eles ganham”, exemplifica Belinzoni. “Alguns são explorados porque o empresário paga o que quer. Paga depois, não paga uma parte, não paga horas extras. Tem gente com doença ocupacional trabalhando”, afirma.

Ele também salienta que, como muitos estrangeiros não estavam acostumados a realizar trabalhos braçais em seus países de origem – eram engenheiros, enfermeiros, professores universitários, contabilistas, etc. -, acabam sofrendo de doenças ocupacionais. “Em Caxias do Sul, o setor de abate de aves e metal mecânica é muito complicado para eles. É um trabalho de indústria, muito pesado e eles não estão acostumado”, afirma Belinzoni. “Tem a caixa para levar e é mais pesada, bota o senegalês para levar'”, exemplifica.

Contudo, muitos receiam acionar a Justiça por medo de não conseguirem mais emprego. O advogado cita o caso de Ali, um senegalês que dava aulas de francês em uma universidade de seu país e passou a trabalhar em uma indústria de abate de aves quando chegou a Caxias do Sul, no final de 2013. Em decorrência do esforço repetitivo que fazia, acabou contraindo uma lesão no ombro. “Esse é um caso que eu atendi várias vezes. Ele conversa comigo frequentemente, mas nunca entrou com ação porque precisa do emprego. Se eu entro com uma ação de alguém que está com problema no ombro, qual o outro emprego que ele vai conseguir? Ele não vai conseguir um emprego que tenha que fazer trabalho braçal”, afirma.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Belinzoni faz atendimento pro bono de imigrantes que têm direitos trabalhistas desrespeitados no Estado | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Segundo o advogado, não é só em relação à falta de direitos que a diferença cultural prejudica os imigrantes. Como a maioria dos senegaleses, por exemplo, é muçulmana, durante o mês do Ramadã, eles não podem comer nas primeiras 12 horas do dia, mas isto não é respeitado pelo empregador. “Eles queriam um intervalo após o Ramadã, mas o empregador não dá, porque não entende”, diz.

Belinzoni estima que 5 mil imigrantes, em sua maioria africanos, tenham chegado à região de Caxias e Bento Gonçalves para trabalhar nos últimos dois anos. Desses, ele estima que metade tenha sido prejudicada com alguma forma de desrespeito aos direitos trabalhistas.

Segundo o advogado, o que os imigrantes mais precisam é de orientação. Ele salienta que, mesmo tendo atendido dezenas de trabalhadores, poucos são aqueles que decidem entrar na Justiça.

“O trabalhador brasileiro é mais informado. Se o cara olha no contracheque e recebeu menos horas extras do que trabalhou, ele vai reclamar. O senegalês não. E é por isso que eles têm os direitos lesados. É por isso que eles têm que ter informação de que eles não estão pedindo um favor ao empregador, eles têm que receber pelo que trabalham”, disse Belinzoni. “Se eles adoecerem, têm que receber tratamento. Se tiverem alguma lesão incapacitante, têm que receber indenização. Essa informação é que falta para eles”, complementou.

Sanfelice acredita que o ciclo de imigração deve continuar no futuro próximo | Foto: Ascom/MPT
Sanfelice acredita que o ciclo de imigração deve continuar no futuro próximo | Foto: Ascom/MPT

A procuradora Patrícia Sanfelice salienta que, mesmo quando não há casos de violação de direitos humanos, a falta de informação pode prejudicar os trabalhadores imigrantes. Ela conta o caso de dois trabalhadores haitianos que chegaram ao Brasil pelo Acre e foram chamados para trabalhar em Porto Alegre por uma empresa da construção civil.

“Ao fim de três meses, eles foram demitidos. Como eles só falavam francês e creole, procuraram ajuda porque não estavam entendendo o que estava acontecendo. Simplesmente tinha encerrado o contrato por prazo determinado, que é o contrato de experiência. Era uma situação normal, mas eles não sabiam que estavam sendo contratados por experiência”, afirmou. “Eles assinam o contrato de trabalho, mas não sabem o que está escrito, porque não sabem o português”, completa.

Auxílio para superar barreira do português

Gelson Santana, presidente do Sticc, diz que o sindicato recebe com frequência denúncias de abusos que afetam não só os imigrantes, como também os brasileiros. Um exemplo seria um empreendimento residencial em construção na região do Parque Germânia pela empresa CFL.

Segundo o Sticc, 74 trabalhadores foram demitidos em junho, sendo 32 deles haitianos, por problemas com o empreiteiro e estão sem receber – os brasileiros há dois meses e os estrangeiros há três.  “O apartamento no térreo custa R$ 5 milhões, a cobertura custa R$ 9 milhões, e deixam de pagar quem constrói”, diz.

Santana concorda que o principal problema enfrentado pelos imigrantes é a língua. Por isso, o sindicato procura oferecer cursos. “O empresário brasileiro já não cuida do trabalhador local, imagina o que eles não vão fazer com quem não conhece a língua e as leis”, diz.

Para auxiliar nessa questão, o sindicado oferece cursos de português a imigrantes. No momento, cerca de 30 haitianos estão recebendo aulas aos sábados. Além disso, o Sticc tenta ajudar os imigrantes a superar a barreira da língua com a tradução da convenção coletiva do sindicato e está solicitando junto ao Sindicato da Indústria da Construção (Sinduscon) a tradução do contrato de trabalho para a língua pátria dos migrantes.

Santana explica que o Sticc também oferece palestras sobre saúde e segurança para os imigrantes. Em abril, também foi realizado um encontro que contou com a presença do embaixador do Haiti.

Segundo o Sticc, entre mil e dois mil estrangeiros estão trabalhando na construção civil em Porto Alegre. O sindicata salienta, porém, que não são todas as empresas que desrespeitam os direitos trabalhistas dos imigrantes. Muitas delas não apresentam problemas e têm elogiado a atuação dos imigrantes pelo desempenho e disposição para o trabalho.

| Foto: Carol Ferraz/Sul21
Marc veio o Brasil com o sonho de estudar. Desde o ano passado, ele curta um técnico de Segurança do Trabalho| Foto: Carol Ferraz/Sul21

Por que os imigrantes vêm para o Brasil?

Roosvens Elissa Marc, o haitiano que atualmente trabalha no Sticc, conta que veio para o Brasil com o sonho de continuar a estudar. Como não tinha regularizado seus documentos escolares, só conseguiu começar seis meses depois de sua chegada ao Brasil. Atualmente, ele tem aulas no curso técnico de Segurança do Trabalho da Factum.

Por outro lado, logo que chegou ao Brasil, ele já tinha uma carteira de trabalho que lhe permitia trabalhar. O advogado Ricardo Belinzoni explica que isso acontece porque, desde 2010, os haitianos que pedem asilo no Brasil têm direito a um visto especial humanitário por causa do terremoto que abalou o país. Outros imigrantes, como os africanos, não teriam direito a esse benefício, mas acabam conseguindo de forma provisória, o que explicaria o crescimento da imigração para o Brasil nos últimos anos.

“O Brasil é rota porque é muito simples trabalhar aqui. A lei do Ministério do Trabalho e Emprego diz que, para algum estrangeiro vir trabalhar aqui, ele tem que ter um contrato por prazo determinado. Só que, o que acontece na prática, é que, quando eles fazem o pedido na Polícia Federal para se caracterizarem como refugiados, recebem um número, equivalente ao nosso CPF, e com ele já conseguem uma carteira de trabalho”, afirma Belinzoni, salientando que eles então podem trabalhar legalmente no Brasil até que o mérito de seus pedidos de refúgio seja julgado, o que pode levar anos.

A procuradora Sanfelice reitera que a onda de imigração que o Brasil vem recebendo diz respeito a imigrantes em condição legalizadas e não se trata de imigração ilegal como vista na Europa e nos Estados Unidos. Dada essa situação, ela acredita que a tendência de vinda de estrangeiros deve permanecer pelos próximos anos. “É uma espécie de ciclo. Não parece algo que vai acabar, porque tem empresas interessadas nessa mão de obra”, afirma.

Faltam números oficiais

Apesar de existirem milhares de imigrantes trabalhando no Estado, ainda não há números oficiais. De acordo com o Comitê Estadual de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas (Comirat), existe o projeto de realizar um levantamento do tipo em conjunto com a Federação das Associações de Municípios (Famurs).


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