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3 de julho de 2015
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11:11

Mulheres relatam rotina de assédios sexuais no transporte público

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Sul 21
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Foto: Alina Souza/Sul21
| Foto: Alina Souza/Sul21

Débora Fogliatto

Nesse dia, eu sentei no corredor do lado de um homem e cochilei.  Acordei quando já estava chegando no Centro e ele estava com a mão no meio das minhas pernas — embaixo da minha bolsa — e eu fiquei confusa, não me mexi porque achei de início que ele tava tentando me assaltar. Até que eu me dei conta de que não era isso. 

O relato acima expõe uma realidade que as mulheres vivenciam diariamente: o assédio praticado por homens no transporte público. Os casos são tantos e tão mais frequentes do que muitas pessoas imaginam que algumas vítimas passam a tomar medidas como não sentar ao lado de homens, evitar saias curtas ou blusas decotadas nos coletivos e não dormir durante o trajeto. Mas, apesar de ser uma realidade na vida das mulheres que usam ônibus e trens todos os dias, esse tipo de violência não tem sido alvo de campanhas de conscientização no Estado, onde ainda acontecem de forma isolada. Em geral, os governos do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre não realizam ações para alertar os passageiros e incentivar as denúncias.

Um dos entraves é a dificuldade de se identificar os agressores, visto que em geral são passageiros desconhecidos, o que desmotiva as mulheres a denunciarem. Na Argentina, a campanha #Transportelibredeacoso (Transporte livre de assédio), lançada por estudantes da universidade John Kennedy, viralizou nas redes sociais, demonstrando que o país está olhando cada vez mais para os direitos das mulheres.

No Brasil, o Metrô São Paulo já realizou campanhas contra o assédio, especialmente em referência aos casos de “encoxamentos” que foram amplamente divulgados no ano passado. No Distrito Federal, o governo lançou a ação “Assédio sexual no ônibus é crime”. Em Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, a campanha “Chega pra lá”, lançada no final de 2014, colocou cartazes nos coletivos incentivando as passageiras a denunciarem assédios à Brigada Militar. 

No Estado, a Trensurb, empresa que realiza o transporte por trem ligando a capital gaúcha a cidades da região metropolitana e Vale dos Sinos, conta com um grupo de trabalho interno, Mulheres Metroviárias em Movimento, que realiza ações sobre violência de gênero com os funcionários. A empresa também faz ações incentivando denúncias desse tipo de assédio, como a exposição feita durante os 16 dias de ativismo contra a violência contra a mulher, que passou por diversas estações em 2013.

Exposição realizada em 2013, nas estações do Trensurb | Foto: Divulgação/Trensurb
Exposição realizada em 2013, nas estações do Trensurb | Foto: Divulgação/Trensurb

Algumas ações da Trensurb foram feitas em parceria com o Coletivo Feminino Plural, o que incluía a instalação de um trabalho de prevenção e postos de informação nas estações do metrô. A proposta seria feita em conjunto com a extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres, mas ainda não saiu do papel. O Departamento responsável por estes temas no governo atual afirmou não ter recebido demanda neste sentido, mas se colocou à disposição para conversar com a Trensurb e com coletivos que queiram articular campanhas.

No âmbito municipal, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) apenas recebe as queixas relacionadas a assédios por parte da tripulação, mas não há processos sobre estes casos no momento, segundo a assessoria de imprensa. Este tipo de assédio pode ser denunciado pelo telefone 156, mas a empresa destaca que em casos de os agressores serem outros passageiros, o ideal é denunciar para a polícia. A denúncia também pode ser feita ligando para o número 180, telefone que atende relatos de violência contra a mulher, inclusive de forma anônima.

Relatos

Não é difícil colher relatos sobre diversos tipos de assédio em ônibus e trens. Mulheres lembram tanto de casos acontecidos há dez anos quanto há poucos dias, como o da publicitária Gabriela Lunardi, que quando tinha cerca de 14 anos foi assediada por um homem mais velho em um ônibus intermunicipal. “Eu vi que ele me olhou de cima a baixo e sentou do meu lado. Era verão e eu estava na praia, então obviamente usava um short. Ele foi se grudando em mim, e eu tentando me grudar na janela pra ele não se encostar muito, quando eu vi, ele colocou a mão na minha coxa”, lembra a jovem.

Sem saber o que fazer, com medo de reagir, ela acabou empurrando a mão dele de forma discreta, “como se fosse sem querer”, o que fez efeito. O homem logo tirou a mão e, em seguida, desceu do ônibus. “Tenho nojo até hoje de me lembrar disso e pensar que eu não fiz nada, porque não sabia o que fazer! É bizarro pensar que alguém ‘pode’ encostar em ti.  Parece idiota, mas duvido que um homem já tenha passado por algo parecido”, reflete.

Campanha contra assédio nos trens de Porto Alegre | Foto: Divulgação/ Trensurb
Campanha contra assédio nos trens de Porto Alegre | Foto: Divulgação/ Trensurb

A fotógrafa Camila Cunha também tem traumas de um caso antigo, acontecido quando tinha 13 anos. Na situação, um homem visivelmente bêbado sentou atrás dela e a cutucou, mas ela não entendeu o que ele falou. “Eu voltei a me virar para a frente e aí eu senti os dedos dele começando a envolver meu pescoço por baixo dos meus cabelos”, recorda ela, dizendo que este é apenas o primeiro de muitos casos do tipo que já enfrentou.

Um dos casos mais marcantes aconteceu há cerca de quatro anos, quando sentiu “algo estranho” encostar em seu braço e ombro em um ônibus lotado. “Olhei para o lado e um homem retirou a mão dele. E aí percebi que ele estava com o pênis ereto encostado no meu ombro”, relata. Sem saber como reagir, ela apenas olhou para o homem, que saiu de perto. “Me senti um pouco culpada por não ter feito um escândalo, mas fiquei bem envergonhada”, afirma.

Na maioria dos casos, as mulheres sentem vergonha, medo ou simplesmente não sabem como agir, embora algumas vezes outras passageiras ajudem. Uma jovem relatou que, em um ônibus em Santa Catarina, percebeu um homem muito próximo a mulheres sentadas, colocando sua região genital na altura dos rostos delas. “Até o momento em que, não sei porque, ele achou que uma moça tinha correspondido e colocou o pênis para fora. Aí eu gritei ‘larga seu escroto’, todos olharam, a mulher mudou de lugar e ele saiu correndo na próxima parada”, contou.

A maioria dos casos envolvem homens roçando ou mostrando o órgão genital para mulheres desconhecidas. Uma jovem relata que, quando tinha 14 anos, um homem colocou o pênis para fora, ao lado dela, enquanto estava parado ao seu lado em um coletivo vazio. Já a estudante Antônia Kowacs passou por algo parecido há cerca de dois meses, quando um estranho ficou roçando as partes íntimas em seu ombro. “Eu olhei pra ele algumas vezes e tentei me desvencilhar mas ele continuou. Eu senti medo de fazer qualquer coisa à respeito por receio de que ele pudesse ter alguma reação violenta”, conta.

No trem, passageiros de um vagão viram o assédio que acontecia com Júlia Lewgoy, que tinha 17 anos e era estudante na época. “Foi uma das primeiras vezes em que eu peguei o trem sozinha. Eu estava voltando da aula, umas 19h, o trem estava cheio, e o cara sentado do meu lado estava dormindo. Ele estava bêbado e de repente caiu no chão, e eu levantei, assustada, querendo fugir dali. Nisso, o cara agarrou minha bunda, na frente do vagão inteiro”, recorda, contando que seus livros caíram no chão e ela correu para o outro lado do vagão. Um dos passageiros então ligou para seguranças, que tiraram o homem do trem.

Espaços seguros 

A coordenadora do Coletivo Feminino Plural, Télia Negrão, aponta que as situações que acontecem no transporte público refletem a realidade de violência sexual sofrida por mulheres em todos os locais em que frequentam. “A grande questão que as mulheres no geral e uma parcela do movimento feminista faz é: que mundo é esse em que as mulheres têm que ser confinadas a determinados espaços para que não sofram violência?”, questiona.

Vagão exclusivo para mulheres no metrô de Brasília | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
Vagão exclusivo para mulheres no metrô de Brasília | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil

Em função dessa realidade de assédios e estupros no mundo todo, a Organização das Nações Unidas (ONU) trabalha com a concepção de cidades seguras, em busca de criar espaços seguros para as mulheres. Nesta perspectiva, a questão é que “é preciso enfrentar a violência contra as mulheres de um modo mais amplo, tonar visível e responsabilizar seus autores, para que tenham condições de viver de uma forma segura na nossa sociedade”, afirma Télia. Assim, todos os lugares seriam seguros.

Enquanto isso não acontece, Télia defende que existam os vagões cor-de-rosa, que são exclusivos para mulheres, em horários de pico. Essa medida já acontece em cidades como Brasília e Rio de Janeiro e causou polêmica entre grupos feministas quando começou a ser implantada. Fora do país, Índia, Egito, Japão, Indonésia e México também a adotaram. “Ao mesmo tempo em que se trabalha mudanças estruturais, políticas públicas e estratégia de mudanças comportamentais e consciência de que é preciso construir uma nova cultura baseada no respeito entre sexos, tem que tomar sim medidas de proteção para que enquanto isso não acontece elas não continuem sofrendo violência”, argumenta Télia. Muitas feministas, porém, argumentam que a medida apenas segrega mulheres e não combate o problema real, sem punir agressores.

Registrar sempre 

Embora seja difícil identificar o agressor na maioria dos casos, o procedimento padrão é denunciar sempre que se sentir abusada, segundo o chefe de investigação da Delegacia da Mulher de Alvorada, Leandro Sailer. “São casos complicados, mas com certeza tem que vir na Delegacia da Mulher, nas cidades em que há. O procedimento é sempre fazer registro, até para ter controle disso”, afirmou. Na cidade da região metropolitana, porém, ele afirma que há apenas um registro do tipo desde que a Delegacia foi criada, há pouco mais de um ano.

Ele pondera que na capital, alguns ônibus têm câmeras, o que pode facilitar a identificação de agressores, mas isso não acontece na maioria das cidades menores da região metropolitana. “Aqui em Alvorada é bem complicado, acaba sendo quase uma agulha num palheiro esse tipo de investigação. Mas se o cidadão chega a colocar o pênis para fora e a encostar na mulher, isso já é classificado como estupro, então é uma situação bem grave”, coloca.


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