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12 de julho de 2015
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21:09

‘Há um tsunami de intolerância, islamofobia e antissemitismo’, diz cartunista francês

Por
Sul 21
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O cartunista francês Plantu, um dos expoentes da caricatura política (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
O cartunista francês Plantu, um dos expoentes da caricatura política (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Fernanda Canofre

Plantu desenha com a mão esquerda. O punho forma um gancho voltado ao próprio corpo. Os olhos parecem presos na ponta da caneta. O rosto mantém expressão fixa, diferente de quando ele está falando sobre política ou respondendo a perguntas. Assim ele traça personagens narigudos, insere cores e escreve textos nos cartoons que publica há 43 anos no jornal francês Le Monde. Entre idas e vindas, Plantu – que também passou por outros veículos tradicionais de imprensa francesa – se tornou um dos expoentes da geração de cartunistas pós-Charles De Gaulle, lado sátiro do maio de 68, fundadores de uma escola na caricatura política.

Esta semana, depois de participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o cartunista passou por Rio de Janeiro e Porto Alegre para debater seu trabalho e apresentar o filme “Caricaturists – Footsoldiers of democracy” (em tradução livre, Caricaturistas – Soldados em pé da democracia).

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Em Porto Alegre, Plantu desenhou para o colega Latuff  Foto: Guilherme Santos/Sul21

Plantu nasceu Jean Plantureux em uma família parisiense que o enviou à faculdade de Medicina assim que terminou o liceu. Dois anos depois, ele trocou a França e os bisturis por Bruxelas e canetas para estudar desenho. Na entrevista que concedeu ao Sul 21, em Porto Alegre, conta que assim que voltou a Paris, em 1972, conheceu o trabalho de Cabu, Wolinski e outros grandes publicados no recém-lançado Charlie Hebdo e se encantou. Descobriu que a mistura de política e desenho era seu rumo. Mas, apesar da amizade que manteve com os colegas, sempre esteve dois passos separado deles.

Quando o Charlie Hebdo publicou a primeira charge do Profeta Maomé em 2006, Plantu não viu muita graça. No mesmo ano, durante um encontro em Nova York a convite do então Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, foi um dos criadores da iniciativa, que hoje preside, a Cartooning for Peace (Desenhando pela Paz). O projeto começou com 12 artistas empenhados na ideia de “desaprender a intolerância” através da compreensão cultural. Hoje já são 125, de 41 países. Na época, Plantu declarou ao jornal L’Observateur: “Eu reivindico a auto-censura. Os tabus existem, é preciso saber como transgredi-los. Mas o desenhista de imprensa tem uma responsabilidade jornalística. Eu acredito que é preciso ser respeitoso mesmo no desrespeito. (…) Isso não é prender a liberdade de expressão, é um passo adiante pela inteligência”.

Nove anos e mais algumas polêmicas com as três religiões monoteístas depois, o Charlie virou manchete no mundo, em janeiro de 2015, quando islamistas invadiram a redação do jornal e assassinaram 12 pessoas. O editor Charb, além dos icônicos Cabu, Wolinski e Tignous estavam entre as vítimas. Assim como em 2006 – quando mesmo sem estar de acordo defendeu o semanário colocando um homem de barba na capa do Le Monde com um cartaz dizendo: “Não se pode fazer caricaturas com Maomé” – em 2015, Plantu também se uniu à campanha #JeSuisCharlie, adicionando um “mas”. O tipo de sátira que vinha sendo feito às religiões não estava de acordo com o estilo de Plantu. Ainda assim, ele nunca deixou de defender o direito que tinham de fazê-lo. Logo depois dos ataques, foi ele o responsável por encabeçar uma campanha em busca de financiamento para manter o Charlie quando a comoção mundial deixar de sustentar o semanário.

 

Plantu também enfrentou sua cota de polêmica com desenhos e religião. Em 2009, uma campanha de emails foi organizada contra ele pelo grupo America needs Fatima ou “América precisa de Fátima”, organização católica ligada à Sociedade Americana de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. O motivo? Um desenho em que Plantu mostrava Jesus Cristo, o Papa Bento XVI e um cardeal em um barco distribuindo camisinhas a pessoas na África, ao invés dos pães multiplicados. Ao mesmo tempo em que defende que o medo não pode fazer desenhistas baixarem o lápis, Plantu defende há anos a ideia de uma “pedagogia da imagem”, algo que ajude as pessoas a compreender o que uma caricatura quer dizer.

Plantu fala durante evento realizado na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Plantu fala durante evento realizado na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Como um dos maiores caricaturistas da França, ele revelou durante o encontro na capital que viu sua vida pessoal sofrer impacto depois dos ataques. Não apenas pelos companheiros que perdeu. Em uma viagem a Bruxelas, no início do ano, levou um susto quando se viu cercado por uma escolta de 16 policiais e identificou uma câmera instalada na porta do seu quarto de hotel. O medo, segundo ele, que já era existente – Wolinski, por exemplo, dizia abertamente que tinha medo de ir trabalhar nos últimos anos – ficou ainda pior.

O que leva Plantu a uma das reflexões que tem entregado mais tempo nos últimos anos: quando sair, quem ocupará seu lugar? Na sua visão, os diretores de jornais já estão substituindo aos poucos o “desenho de imprensa” por anúncios de Givenchy e Chanel, sem colocar nenhum investimento em jovens caricaturistas. Talvez o espaço da caricatura na imprensa tenha sido um direito remido com validade até sua geração. Talvez.

Tu publicaste teu primeiro trabalho em 1972, quatro anos depois do Maio de 68 na França. Como fazer parte dessa geração influenciou tuas visões políticas?

Sim, porque eu era apaixonado pelos desenhos que eram publicados no Charlie Hebdo [o semanário foi criado em 1970, publicado junto à revista satírica Hara-Kiri], por desenhistas como Cabu, [Georges] Wolinski, [Jean-Marc] Reiser. Foi graças a eles que peguei o gosto e passei a ter prazer com a caricatura e a vida política. Depois, quando me dei conta que havia outro meio na imprensa, passei a me interessar pelos temas Norte-Sul. Acho que isso era uma prioridade nos anos 1970 e 1980, ainda assim me tornei um desenhista terceiromundista.

A França sempre teve uma tradição política com cartoons na imprensa, especialmente na crítica política. Mas atualmente os desenhos se tornaram uma forma de expressão em quase todo o mundo. Desde que tu começaste até agora, quais foram as principais mudanças neste cenário?

Depende do lugar e há lugares onde os desenhistas se expressam de verdade, com total liberdade, são verdadeiros representantes de seus povos. Mas há sociedades, mesmo ocidentais, onde há um medo que se instala e que pouco a pouco acaba permitindo que isso seja o que decide sobre as imagens. Imagens que não incomodam acabam tomando lugar da caricatura.

Em resposta às ameaças sofridas pelo Charlie, após a publicação da primeira charge de Maomé, Plantu colocou na capa do Le Monde essa ilustração. Nela, um homem desenha uma imagem escrevendo várias vezes a frase "Eu não desenharei Maomé". (Foto: Reprodução)
Em resposta às ameaças sofridas pelo Charlie, após a publicação da primeira charge de Maomé, Plantu colocou na capa do Le Monde essa ilustração. Nela, um homem desenha uma imagem escrevendo várias vezes a frase “Eu não desenharei Maomé”. (Foto: Reprodução)

Em 2006, quando o semanário Charlie Hebdo publicou as primeiras caricaturas do profeta Maomé e gerou polêmica, tu estampaste a primeira página do Le Monde com um desenho de um homem com barba, escrevendo diversas vezes a frase: “Não devo desenhar Maomé”. Mas, nessa mesma época, disseste em uma entrevista ao jornal L’Observateur que não concordava com a ideia de “criticar agressivamente a crença” do outro. Tu manténs essa posição?

Eu sempre pensei, mesmo antes de 2006, que não tinha interesse em humilhar pessoas. Isso é o que importa. Tu podes ter fé ou não ter, mas humilhar as pessoas por isso não me parece interessante. A mim, isso não interessa. Que outros tenham vontade de fazê-lo, seguir um outro olhar…Mas essa é minha posição. A liberdade, para mim, é reivindicar essa proposição.

O que mudou na França depois dos ataques ao Charlie Hebdo [ocorridos em janeiro de 2015]?

Estamos no início de uma grande, grande pedagogia das imagens e, mesmo assim, vejo que as pessoas ainda não estão preparadas para compreender o que é uma caricatura. Em muitos lugares por onde passo, escolas, universidades, encontro com jovens que pensam que foi bem feito para os cartunistas que foram assassinados. Pensam que eles buscaram isso. Isso quer dizer que é preciso que se faça todo um trabalho com os jovens, com os professores para reaprender o que significa uma linha vermelha, o que é autocensura. São reflexões sobre a nossa própria vida, não dos desenhistas, nem dos jornalistas, mas de cidadãos que têm opiniões e querem se expressar, sem necessariamente aniquilar ou humilhar os outros. Se pode mudar de opinião, sem necessariamente humilhar os outros. O objetivo é fazer sempre o debate.

[Depois dos ataques] O medo se instalou. Há um tsunami de intolerância que se instalou, de islamofobia, de antissemitismo na França.  Nós do Cartoonists for Peace lutamos exatamente contra isso.

Plantu
Charge publicada em 2009 que gerou polêmica entre católicos dos Estados Unidos.

Em 2009 um desenho seu provocou uma polêmica [uma charge de Plantu mostrava Jesus Cristo, ao lado do Papa Bento XVI, distribuindo preservativos, ao invés de pão, a pessoas na África]. Há algum tema que seja proibido a você mesmo?

Sim, há temas interditados, como a vida privada dos homens e mulheres políticos. Acho que é um tabu, mas respeito isso. No entanto, uma proposição como essa do Cristo distribuindo preservativos, eu ainda a reivindico hoje porque mesmo com a polêmica eu acho que fiz uma bela imagem do Cristo. (risos) Eu não posso ter vergonha de fazer um desenho, mesmo que ele seja polêmico.

Mas como foi lidar com essa reação negativa tão forte?

Ah, eu tenho frequentemente nas minhas imagens, nos meus posts (Plantu utiliza o Twitter quase diariamente), pessoas que amam e outras que não gostam do meu trabalho. E muitas das vezes, durante três quartos do tempo, as pessoas chegam em casa e me escrevem: “tudo bem, você foi perdoado”. Porque como eu os respeito, eles sabem que eu não tentei debochar.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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