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1 de setembro de 2014
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19:23

O poder das histórias de Mia Couto: escritor moçambicano conta memórias em Aula Magna da Ufrgs

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Sul 21
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 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Foi no chão da cozinha que me fiz poeta”, disse o escritor, na Aula Magna da UFRGS | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Débora Fogliatto

O escritor moçambicano Mia Couto ministrou Aula Magna na Ufrgs nesta segunda-feira (01), quando falou sobre memórias, sonhos e histórias. Para um Salão de Atos lotado, ele abordou o tema proposto a partir da desconstrução de suas palavras: Guardar memórias — “de que vale ter memória se o que eu mais vivi nunca se passou?” –, Contar Histórias — “falar histórias é algo tão triste, a única maneira é viver novas” — e Semear o Futuro — “moçambicanos têm essa ideia de que o passado se mistura com o futuro”.

Em sua palestra, assim como em seus livros, as histórias pessoais se entrelaçam com as de seu país, de forma que dão a impressão de serem tão únicas quanto coletivas. Mia Couto falou sobre suas memórias “artesanais, caseiras”, que para ele, são também histórias. “Essa distinção entre memória e história é uma coisa fabricada: memórias e histórias se entrelaçaram como se fossem uma única coisa, que é o chão da minha alma”, afirmou.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Nascido na cidade de Beira, em Moçambique, Mia Couto é um dos mais conhecidos autores de língua portuguesa da atualidade, com livros publicados em mais de 22 países. Além de escritor e jornalista, trabalha como biólogo especializado em Ecologia e foi professor universitário nessa área.

O escritor dividiu sua fala em cinco “momentos”, lembranças específicas que moldaram sua vida. O primeiro deles é a “casa”: “o importante não é a casa onde moramos, mas onde em nós a casa mora. Os materiais que produziram essa casa foram os sonhos”, contou. Seus pais, imigrantes de portugueses no país africano, contavam-lhe histórias sentados na cabeceira da cama, “como se saudade fosse um quarto”.

O segundo momento é a “cozinha”, onde, sentado no chão, ele fazia os deveres da escola. Lá, via as mulheres andando com suas saias longas, que pareciam dançar. “As mulheres falavam baixo, contavam histórias. Era uma alquimia. Incorporou-se na forma de histórias, de sabores, de cheiros. Foi no chão da cozinha que me fiz poeta”, narrou, afirmando que os sussurros das mulheres na cozinha “ensinaram que aquilo que é importante na vida não é falado em alta voz”.

A “rua” é o terceiro momento, que representava a África, “onde se falavam outras línguas e tinham outros deuses” para fora de sua casa com hábitos europeus, “onde havia um único Deus e narrativas em língua portuguesa”. O mundo externo logo começou a incorporá-lo, também. “Nunca compreendo bem esse papel de fronteira, porque África era grande demais para ser barrada pela porta. Em certo momento, não havia dentro nem fora”, colocou.

Ele contou que seu pai, “em plena guerra civil”, coletava pedrinhas cintilantes enquanto seguia os trilhos da ferrovia. “Eu me tornava cúmplice desse jogo, isso me ensinava a ter uma relação com a poesia que mora no chão. A lembrança roubou meu pai do tempo, hoje em qualquer chão do mundo ando como se tivesse catando pedrinhas”, relatou.

O quarto momento são “as falas e os tempos da terra”. As culturas de seu país “sentam todas em oralidade, não se fundam na palavra escrita. Como se alguma coisa para ser verdadeira precise primeiro ser fantasia”. O quinto momento é a guerra civil que assolou Moçambique após se tornar independente de Portugal, no início dos anos 1970 e durou 16 anos.

Mia Couto falou da “amnésia coletiva” que o povo de seu país optou por viver, ao invés de lembrar da violência da guerra. “Essa decisão não foi tomada pelas instâncias do poder, foram as pessoas comuns que adotaram essa decisão de esquecer. Mas será que é possível esquecer tanto? Acho que a resposta é não, esse esquecimento é uma mentira”, refletiu.

A confiança na paz após o fim da guerra veio com as crenças locais, não com a assinatura de um tratado. Uma semana depois do fim da violência, choveu intensamente após um período de intensa seca no país. “Havia sensação de que seca era sinal de desavença dos deuses, quando choveu pessoas acreditaram na paz. Notícia da paz não veio pela televisão ou pelo jornal, mas sim pela chuva”, contou.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Auditório ficou lotado para ouvir Mia  Couto  falar sobre memórias, histórias e futuro| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Ao final da palestra, o escritor abordou a sua ideia de futuro, voltando à história de quando juntava pedrinhas com seu pai. “Voltávamos para casa com bolsos cheios de pedras, que eram jogadas fora pela minha mãe. E ela dizia para eu ir para o quarto, quando eu entrava meu pai dizia ‘estuda para ser alguém’. Ele falava com o futuro. Era um tempo de crença, o futuro era uma fé”, falou.

Atualmente, o mercado e as tecnologias, com a necessidade de se estar sempre “atualizados”, roubam o tempo das pessoas, segundo o autor. “Tudo que nasce mais transitório nasce já morrendo, estamos morrendo na corrida infrutífera para não ficarmos desatualizados. Isso acho que aconteceu por causa dessa coisa chamada mercado, que não tem rosto”, disse. Ele criticou também o constante uso de tecnologias e da necessidade de se registrar todos os momentos em fotos e vídeos. “As máquinas não podem ser as únicas contadoras de histórias, porque o afeto só pode ser trazido por presença corporal. É preciso restituir essa dimensão humana”, ponderou.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para se reaproximar as pessoas e até mesmo sobreviver em tempos de guerras, ele defendeu o poder das histórias e da conexão com os lugares onde se vive, colocando que “um lugar é morto quando ele não produz histórias”. “História é uma maneira que o mundo nos conta e nós contamos o mundo. E eu acredito no poder das histórias, não salvam o mundo mas podem provocar mudanças. Todos nós somos produtores e somos produtos de histórias”, disse.

Ele foi aplaudido de pé pelo auditório e em seguida respondeu perguntas da plateia e da imprensa, onde afirmou estar desconfortável pelo formato da coletiva. Questionado sobre sua posição em relação às eleições presidenciais no Brasil e as relações entre o Brasil e Moçambique, disse não estar em posição para responder e afirmou que “respeita muito o Brasil”.

A vinda de Mia Couto a Porto Alegre foi uma parceria entre a Ufrgs e o Fronteiras do Pensamento, em evento comemorativo aos 80 anos da instituição .


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