50 anos do Golpe Civil-Militar
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2 de abril de 2014
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13:12

A repressão e a resistência durante o regime militar

Por
Sul 21
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A repressão iniciou já com a saída das tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro
A repressão iniciou já com a saída das tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro

Nubia Silveira

A repressão teve início mesmo antes de a ditadura se instalar por completo no país, em 1964. Legalistas, apoiadores do governo João Goulart, começaram a ser presos em Minas Gerais, simultaneamente à saída das tropas comandadas pelo general Mourão em direção ao Rio de Janeiro, com o apoio do governador mineiro, Magalhães Pinto. Na ex-capital federal, no mesmo 31 de março, o governo de Carlos Lacerda reprimiu, espancou e prendeu os que se atreveram a ir às ruas do Rio protestar. Repressão e resistência sempre estiveram lado a lado, destaca o professor Enrique Padrós, do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação (PPG) – História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

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Em Brasília, no final da noite do dia 1º de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, decretou vaga a presidência, mesmo tendo recebido ofício do chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, informando-o de que o presidente se encontrava no Rio Grande do Sul “à frente de tropas militares legalistas e no pleno exercício dos poderes constitucionais, com seu ministério”. Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli é então empossado na presidência.

O jornalista Flavio Tavares, que acompanhou a sessão tumultuada do Congresso, conta em seu livro recém-lançado 1964, o Golpe, que o senador Auro Moura Andrade conseguiu reunir no Congresso 29 senadores e 183 deputados para a sessão histórica. A posse de Ranieri ocorre no Palácio do Planalto, estando presentes, entre outros, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Álvaro Ribeiro da Costa, e o diplomata norte-americano Bob Bentley que, em 2010, revelou a Flavio sua conversa com a embaixada dos Estados Unidos em Brasília. Conversa que passou pelo Rio de Janeiro e chegou a Washington. “Perguntaram-me se tudo fora feito de acordo com a lei e eu disse que não tinha condições de julgar, mas achava que sim, pois até o presidente do Supremo Tribunal Federal estava presente”. De Washington, passando pela embaixada, chegou a Bentley a informação de que os Estados Unidos reconheceriam o novo governo.

Já no dia 2 de abril, os militares organizaram o Comando Supremo da Revolução, integrado por representantes da Aeronáutica (brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo), da Marinha (vice-almirante Augusto Rademaker) e do Exército (marechal Arthur da Costa e Silva). O Comando ficou no poder por duas semanas, até a posse, no dia 15 de abril, do general Humberto de Alencar Castelo Branco, aprovado pelos Estados Unidos e eleito por um Congresso depurado pelo Ato Institucional número 1, editado no dia 9 de abril de 1964, sem fundamentação jurídica ou constitucional, pela junta militar. O AI-1 instituiu a eleição indireta para presidente, deu poderes excepcionais ao Comando e ao futuro presidente, criou o IPM – Inquérito Policial Militar, para justificar as prisões, que vinham e continuariam sendo feitas, e promover a Operação Limpeza, por meio de cassações e expurgos. Entre os primeiros políticos cassados estavam João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Jânio Quadros e Luís Carlos Prestes.

Marechal Arthur da Costa e Silva, integrante do Comando Supremo da Revolução, em reunião no Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro | Foto: Arquivo Nacional, Agência Nacional
Marechal Arthur da Costa e Silva (D), integrante do Comando Supremo da Revolução, em reunião no Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro | Foto: Arquivo Nacional, Agência Nacional

Os golpistas consideravam que a ameaça à segurança interna e à ordem capitalista não viria de fora do país, mas de dentro, dos chamados “inimigos internos”, que, por meio da “subversão”, tentariam implantar o comunismo no Brasil. O temor dos militares era a Revolução Cubana, a cubanização dos países latino-americanos. A Doutrina da Segurança Nacional embasava a repressão.

Nos primeiros dias de abril, entre os setores mais atingidos pelas forças militares estiveram a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), ambas declaradas ilegais, as Ligas Camponesas, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e movimentos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). Foram feitas milhares de prisões irregulares. Servidores públicos foram aposentados, professores expurgados e militares legalistas, reformados.

Segundo passo

O professor Padrós afirma que o segundo passo dado pelos militares, depois da Operação Limpeza, foi fomentar os princípios da Doutrina de Segurança Nacional. O objetivo maior do regime ditatorial era produzir o medo entre a população. Um dos métodos utilizados para deixar os brasileiros inseguros, atemorizados, desorientados foi o sequestro do “inimigo interno”. Esse “inimigo” muda a cada momento. Ninguém sabia para onde o sequestrado era levado. Ele podia ser preso, torturado, morto, desaparecido, sem que as autoridades se sentissem obrigadas a dar explicações. No povo, isso criava o sentimento de autopreservação. As pessoas tratavam de se proteger, de sobreviver. O medo também fazia com que as cadeias de solidariedade fossem desarmadas.

Brasil Ame-0 ou Deixe-0

Os atos institucionais, o sequestro e a censura eram usados para implantar o medo no país, romper com qualquer possibilidade de mobilização.  Crescia cada vez mais o autoritarismo, com o Poder Executivo se sobrepondo ao Legislativo e ao Judiciário e agredindo as liberdades individuais. O fechamento político só aumentava. Qualquer pessoa que falasse em público contra o governo corria o risco de ser presa e torturada. Nos anos 70, as campanhas Ame-o ou Deixe-o, inspirada nos Estados Unidos, Pra Frente Brasil, embalada pelo tricampeonato conquistado pelos brasileiros na Copa do Mundo do México, e a propaganda do milagre econômico brasileiro exerceram um imenso e importantíssimo efeito psicológico sobre a população.

Castelo, que assumira prometendo eleições em 1965 e entregar o cargo em 1966, teve seu mandato estendido, pelo AI-2.

Já em 1966, políticos que apoiaram o golpe voltaram atrás, formando a Frente Ampla. Em 27 de outubro, Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, ex-líderes, respectivamente, da UDN, PSD e PTB, com os direitos políticos cassados, assinam e lançam um manifesto, opondo-se ao governo militar, em busca da redemocratização. Pré-candidatos às eleições presidenciais abortadas, Lacerda e Juscelino se aliam ao deposto Jango, a quem o udenista ajudara a tirar do poder. “A crise de confiança em nome da qual se derrubou um governo, suspeitado de pôr em perigo as eleições, tornou-se uma trágica realidade sob o atual governo, que acabou com as eleições. Como pode o povo confiar em quem nele não confia e, para não lhe dar vez, tomou-lhe o lugar? Revolução autêntica teria sido aquela que desse, há de ser aquela que dê ao povo maior participação, e não menor, nas decisões que marcam o seu destino”, afirma o manifesto.

Manifestações de maio de 68, em Paris, França
Manifestações de maio de 68, em Paris, França

Manifestações estudantis ocorreram em 1968, por vários países, marcantemente em Paris. No Brasil, a repressão editou o quinto dos 17 atos institucionais, regulamentados por 104 atos complementares, publicados entre 1964 e 1969. O AI-5 decretou o fechamento do Congresso Nacional. A desculpa usada para a edição do mais rigoroso dos atos foi a negativa dos parlamentares em conceder licença para que o governo processasse o deputado Márcio Moreira Alves, do PMDB. No dia 2 de setembro, ele conclamara os brasileiros, num discurso feito na Câmara, a não participar das festividades de 7 de setembro, o que foi considerado, pelos militares, ofensivo “aos brios e à dignidade das forças armadas”.

A negativa do Congresso ocorreu em 12 de dezembro. No dia seguinte, a nação era surpreendida com o AI-5. Além de fechar o Congresso, o ato permitia a intervenção em estados e municípios, a cassação de mandatos, a suspensão dos direitos políticos por 10 anos e da garantia do habeas corpus e o confisco de bens daqueles que o Estado considerasse terem enriquecido ilicitamente.

Tudo era proibido, lembra o professor da Ufrgs. Sindicatos, organizações estudantis e sociais não podiam se reunir. Sem-terras passaram a ser perseguidos. A repressão cresceu e a resistência também. Padrós ressalta que a resistência sempre existiu, seja com um simples cruzar de braços ou com a decisão de não baixar os olhos. A partir dos anos 1965/1966, trabalhadores e estudantes voltaram a atuar politicamente. O movimento operário realiza grandes greves entre 1966 e 1968. O governo negocia com os trabalhadores e tenta transformar as mobilizações em meras lutas por salário. “Mas é uma questão política”, frisa o professor. Padrós considera que os trabalhadores estão entre as principais vítimas da ditadura, devido à política econômica de arrocho salarial e concentração de renda.

Movimento operário

Metalúrgicos de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, entraram em greve em abril de 1968. O movimento saiu vitorioso. A ditadura cedeu às reivindicações, concedendo 10% a mais no salário. Com a conquista, voltaram a paralisar em outubro. Foram violentamente reprimidos, havendo intervenção no sindicato.

Greve dos metalúrgicos de Contagem, em Minas Gerais, foi vitoriosa, em 1968
Greve dos metalúrgicos de Contagem, em Minas Gerais, foi vitoriosa, em 1968

Outra vitória havia sido obtida em São Paulo, no dia 1º de maio. Metalúrgicos de posição mais radical expulsaram o governador Abreu Sodré do palanque montado na Praça da Sé para comemorar o Dia do Trabalhador. Sodré, governador nomeado pela ditadura, fora convidado pelo Movimento Intersindical Anti-Arrocho (MIA), de tendência moderada, que congregava sindicalistas do PCB e os chamados pelegos.

Em julho, foi a vez dos metalúrgicos de Osasco, na Grande São Paulo, paralisarem. Aderiram ao movimento os trabalhadores da Cobrasma, Brown Boveri, Granada, Lonaflex, Barreto Keller e Braseixos. Os operários exigiam reajuste de 35% e reposição salarial a cada três meses. O governo reagiu. Declarou a greve ilegal e interveio no sindicato. Os líderes passaram para a clandestinidade ou foram para o exílio. A ideia era confrontar a ditadura, provocar uma crise militar.

Em dois anos, de 1968 a 1970, o governo afastou a diretoria de 563 sindicatos, com o objetivo de criar outro tipo de sindicalismo, mais pacato, preocupado apenas em resolver as questões trabalhistas, permanecendo longe da política. A mudança deveria se refletir também na formação de novos quadros, afastados do PCB e de suas dissidências.

O historiador Yuri Rosa de Carvalho em seu estudo O movimento operário e a Ditadura Civil-Militar: resistência, luta armada e negociação, afirma que “dos 498 trabalhadores processados pela Justiça Militar por envolvimento com a esquerda em geral, 98 teriam ligações com a Ala Vermelha/PCdoB, uma dissidência do PCdoB, com a Ação Popular, a AP, e o Partido Operário Revolucionário (Trotskista)”.

O novo sindicalismo surge no final dos anos 70. No ABC paulista, os metalúrgicos entram em greve, em 1979 | Foto: www.cnv.gov.br
O novo sindicalismo surge no final dos anos 70. No ABC paulista, os metalúrgicos entram em greve, em 1979 | Foto: www.cnv.gov.br

No final da década de 1970, surgiu um novo sindicalismo. Luiz Inácio Lula da Silva, que viria a ser eleito presidente do Brasil, em 2002 e 2006, presidia pela segunda vez o sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, quando, em maio de 1978, foi deflagrada a greve dos metalúrgicos, a partir da paralisação dos trabalhadores da fábrica da Scania. Segundo pesquisa do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV), mais de 150 mil metalúrgicos pararam em todo estado de São Paulo. Os trabalhadores queriam 70% de aumento e a legalização dos representantes sindicais nas empresas.

Novo movimento ocorreu em 1979, com duração de 15 dias. Foram realizadas grandes assembleias, com a presença de cerca de 80 mil metalúrgicos, no estádio municipal da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. O Ministério do Trabalho interveio no sindicato. Lula negociou com o governo e empresários. Em troca da suspensão da greve, foi dado um pequeno reajuste salarial, levantada a intervenção no sindicato e os grevistas não foram punidos. A promessa era de que em 45 dias seria dado início a novas negociações.

http://youtu.be/WamHgiqUHmg

A maior de todas as greves, que durou 45 dias, ocorreu em 1980. Dessa vez, a repressão foi ainda maior. Os dirigentes sindicais – entre eles, Lula – foram presos e, mais uma vez, houve intervenção no sindicato. O futuro presidente foi processado e condenado em primeira instância, com base na Lei de Segurança Nacional. Acabou absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM), mas afastado da presidência do sindicato. Na ditadura, civis eram julgados pela Justiça Militar.

Com o novo sindicalismo, surgiram o Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983. Três anos depois, foi criada a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), substituindo a Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), constituída em 1983.

Movimento estudantil

Os estudantes, em sua grande parte, simpatizavam ou pertenciam ao PCB – Partido Comunista Brasileiro, na época do golpe. À medida que a repressão aumentava, e o PCB não reagia como esperavam, parte dos estudantes e dos trabalhadores, aderiram às dissidências do partidão e à luta armada.

Bona Garcia: em 1968, os estudantes se dedicavam a ler e a debater sobre as revoluções russa. chinesa e cubana | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Bona Garcia: em 1968, os estudantes se dedicavam a ler e a debater sobre as revoluções russa, chinesa e cubana | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Como disse João Carlos Bona Garcia, ex-integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), em entrevista ao Sul21, em 1968, os estudantes se dedicavam a ler sobre as revoluções russa, chinesa e cubana. Liam e debatiam. A universidade vivia em ebulição. Muitos estudantes já estavam ligados aos movimentos que pregavam a luta armada.

Fundada em 1937 e colocada na ilegalidade pelos militares, a União Nacional dos Estudantes (UNE) divulgara, às vésperas do golpe, um panfleto em que denunciava a preparação de um “golpe reacionário”, liderado por “gorilas militares e civis”. Em 1º de abril, a sede da UNE foi saqueada e incendiada. Os líderes tiveram que recorrer ao exílio. Mas a entidade continuou a realizar seus congressos. Em 1967, a UNE rompeu com a União Internacional dos Estudantes (UIE). Motivo: a UIE era pró-soviéticos e a UNE, pró-chineses.

A entidade lutava pelo fim dos Acordos MEC-Usaid e da Lei 4464, conhecida por Lei Suplicy de Lacerda. Tanto a lei quanto o acordo com o órgão norte-americano acabavam com a autonomia da Universidade. A lei, de 9 de novembro de 1964, fechou a UNE, que foi substituída pelo Diretório Nacional de Estudantes (DNE), e os Diretórios Centrais de Estudantes (DCE).

O estudante secundarista Edson Luís do Nascimento é morto pelas forças repressoras num protesto no restaurante Calabouço
O estudante secundarista Edson Luís do Nascimento é morto pelas forças repressoras no protesto no restaurante Calabouço

No dia 28 de março de 1968,  o secundarista Edson Luís Lima Souto, de 18 anos, que participava do protesto contra o fechamento do restaurante Calabouço, inaugurado em 1951, na sede da UNE, foi morto a bala pela repressão. Seu corpo foi velado na Assembleia Legislativa do então estado da Guanabara. Os militares proibiram manifestações. Não adiantou. Cerca de 60 mil pessoas acompanharam o corpo até o Cemitério São João Batista, no Rio.

“A resposta foi violenta”, afirma Mário Maestri, ex-preso político e professor do curso de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, no texto Brasil, 1968: o assalto ao céu, a descida ao inferno, publicado no livro 68, a geração que queria mudar o mundo – relatos, publicado pela Comissão Nacional da Anistia. “Por diversos dias, a cidade (Rio de Janeiro) tornou-se campo de acirrada batalha. De um lado, estudantes e populares. De outro, polícia e Exército”. Maestri segue descrevendo o horror daqueles dias: “Universitários, secundaristas e populares são mortos. Ao deslocarem-se pelas ruas do Centro, os soldados protegem-se debaixo das marquises dos objetos atirados desde os edifícios. Um policial militar, a cavalo, morre ao receber na cabeça um pesado balde, ainda carregando cimento fresco, lançado desde um edifício em construção”.

Passeata dos cem mil desafia a ditadura, no Rio de Janeiro
Passeata dos cem mil desafia a ditadura, no Rio de Janeiro

Apesar da repressão, a UNE continuou a promover passeatas, às quais aderiram intelectuais, religiosos, professores. Em 26 de junho de 1968, ocorre a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, desafiando a ditadura. Os cartazes exortavam: Abaixo a ditadura! Em São Paulo, aconteceu a Batalha da Rua Maria Antonia, via do centro da capital paulista, onde se confrontaram estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, ligados à UNE, e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Uma bala perdida matou o estudante secundarista José Carlos Guimarães.

Também em 1968 se realizou, clandestinamente, o memorável XXX Congresso da UNE, num sítio da pequena cidade de Ibiúna, interior paulista. Aproximadamente mil alunos foram presos por policiais do Dops e da Força Pública de São Paulo. Eles foram delatados pelos moradores de Ibiúna que estranharam a movimentação. Os congressistas não resistiram, e os líderes universitários foram presos, enquadrados na Lei de Segurança Nacional: José Dirceu, presidente da UEE, Luís Travassos, presidente da UNE, Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana de Estudantes, e Antonio Guilherme Ribeiro Ribas, presidente da União Paulista de Estudantes Secundários. Todos foram levados para o Dops. O governador Abreu Sodré afirmou sobre a ação policial: “Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei, após horas de angústia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que participavam do congresso da UNE”.

Os quase mil participantes do Congresso da UNE, em Ibiuna, em 1968, foram presos | Foto: www.imagens.68.org
Os quase mil participantes do Congresso da UNE, em Ibiuna, em 1968, foram presos | Foto: www.imagens.68.org

A UNE paralisou suas atividades. Para isso, contribuiu, em muito, o AI-5 e o Decreto Lei 477, que previa penas severas para professores e alunos que, entre outros atos, participassem de passeatas, comícios não autorizados ou eventos “destinados à organização de movimentos subversivos”. Muitos estudantes, então, passaram para a clandestinidade e aderiram à luta armada.

Operários e estudantes condenados

Entre 1964 e 1979, foram presos mais de cinco mil trabalhadores. Dez mil acabaram banidos ou expulsos do sindicalismo. O levantamento é apresentado por Raul Carrion, ex-preso político e deputado estadual pelo PCdoB, no texto A ditadura não foi uma criação de “Homens Maus”, que consta do segundo volume de A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985, publicação da Assembleia Legislativa e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

Brasil Nunca MaisO historiador Yuri Rosa de Carvalho cita os números apresentados por Daniel Reis Filho, em relação aos processados na Justiça Militar, com base na publicação Brasil: Nunca Mais (BNM). Foram denunciados 6.009 trabalhadores, “por envolvimento com as organizações da luta armada”. Eles são definidos como trabalhadores intelectuais e manuais, excluídos os casos sobre os quais nada consta. Yuri considera “problemático o conceito de ‘trabalhadores intelectuais e manuais’”. Para ele, o interessante é “mostrar as participações específicas que constam nos dados do BNM”.

Os operários fazem parte do grupo de trabalhadores manuais urbanos – 924 casos citados -, representando 17,4% dos apresentados. O maior grupo é dos estudantes, com 1.123 denúncias, equivalente a 21,2% do total. O terceiro grupo, com 765, é dos graduados das Forças Armadas, representando 14,4% do total.

Os camponeses denunciados à Justiça Militar, de acordo com Brasil: Nunca Mais, diz o historiador, somam 193 casos, 3,67% do total. Yuri diz que número tão baixo se deve à “alta taxa de urbanidade dos denunciados, pois cerca de 4.077 deles moravam em capitais, enquanto 1.849 residiam no interior, ou seja, 68,79% traçam o perfil de uma maioria urbana”.

O Brasil Nunca Mais traz outro número: 884 mulheres foram presas e denunciadas à Justiça Militar. Cecília Coimbra, ex-presa política e fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, acredita que o número é bem maior. Diz ela, no artigo Gênero, Militância, Tortura, que consta do livro da Comissão Nacional da Anistia: “pelo levantamento feito por entidades de direitos humanos publicado no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964 (1995) há 24 mulheres mortas e 20 desaparecidas, números que consideramos bastante incompletos ainda”.

Luta armada e repressão

ALNDissidentes do Partido Comunista criaram novas siglas de oposição ao governo. Os seguidores são, na sua maioria, jovens, idealistas, românticos, que só vêem um jeito de derrubar o regime: a luta armada. Surgiram grupos regionalizados e de atuação nacional. Entre esses estão a Aliança Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), o Partido Comunista Revolucionário (PCBR), o Partido Operário Comunista (POC), a Ação Popular (AP) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que, em 1969, se uniu ao Comando de Libertação Nacional (Colina) e adotou o nome de Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares).

A resistência crescia à medida que aumentava a repressão. As Forças Armadas, segundo informa o deputado Carrion, aumentaram em 160%, passando de 114 mil para mais de 300 mil homens. Seu objetivo mudou, o novo foco era o combate do “inimigo interno”. O governo militarizou as polícias estaduais e montou a estrutura de espionagem e repressão. O primeiro órgão a ser criado foi o Serviço Nacional de Informações (SNI), que, de acordo com o relato do deputado comunista, “chegou a ter à sua disposição 300 mil informantes e um milhão de colaboradores”, tendo fichado 250 mil pessoas.

Cada ministério ganhou a sua Divisão de Segurança e Informação (DSI). Nos demais órgãos públicos, funcionava a Assessoria de Segurança e Informação (ASI). O Departamento de Ordem Política e Social (Dops), existente nos estados e que já fora usado na ditadura de Getúlio Vargas, se transformou em centro de tortura. Exército, Marinha e Aeronáutica também formaram seus centros de repressão e tortura: CIE, Cenimar e Cisa.

Os DOI-Codis nascem no governo do general Médici
Os DOI-Codis nascem no governo do general Médici

Surgem, em 1970, no governo Médici, os famigerados DOI-CODIs (Destacamento de Operações e Informações/Centro de Operações e Defesa Interna), que funcionavam em cada uma das regiões militares do país, subordinados ao Comando Regional do Exército. Com o apoio de empresários, foi criada, em São Paulo, a temida Operação Bandeirante (Oban), que reunia representantes do II Exército, da Aeronáutica, da Marinha, do Departamento da Polícia Federal (DPF), do Serviço Nacional de Informações (SNI), da Secretaria de Segurança Pública (SSP), do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), da Guarda Civil e da Força Pública do Estado de São Paulo (FPESP).

Presos políticos testemunharam a presença de empresários durante as torturas. Um deles, Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz, foi justiçado numa ação da ALN e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), em 1971. O mesmo aconteceu com Charles Rodney Chandler, capitão norte-americano e funcionário da CIA, que no Brasil se apresentava como estudante de sociologia. Em 12 de outubro, dia em que a polícia desbaratou o Congresso da UNE em Ibiúna, Charles foi morto, em São Paulo, por integrantes da VPR e ALN. No ano seguinte, a ALN e o MR-8 sequestraram o embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick.

A captura de Elbrick, em 4 de setembro de 1969, ocorreu poucos dias depois de o presidente Arthur da Costa e Silva, enfermo, ser substituído por uma junta militar: general Aurélio de Lira Tavares, do Exército, almirante Augusto Rademaker Grünewald, da Marinha, e brigadeiro Márcio de Sousa e Melo, da Aeronáutica. O governo aceitou as condições impostas pelos militantes de esquerda: libertaram 15 presos políticos, que foram banidos e enviados para o México, e publicaram nos jornais e leram nas estações de rádio e TV o manifesto em que os militantes de esquerda afirmavam:  “o rapto do embaixador é apenas mais um ato da guerra revolucionária, que avança a cada dia e que ainda este ano iniciará sua etapa de guerrilha rural”. E concluíam com uma advertência àqueles que “torturam, espancam e matam nossos companheiros: não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa. Estamos dando o último aviso. Quem prosseguir torturando, espancando e matando ponha as barbas de molho. Agora é olho por olho, dente por dente”. A maioria dos libertados optou por sair do México. Alguns permaneceram em Cuba, fazendo cursos de guerrilhas, outros foram para a Argélia.

As organizações se mantinham com expropriações feitas em bancos, empresas, carros fortes. Com o dinheiro compravam armas inclusive do Exército. A repressão desencadeada pelo governo não impediu que outros sequestros fossem realizados. A VPR capturou em São Paulo, em 11 de março de 1970, o cônsul japonês, Nobuo Okushi. O propósito inicial era libertar o militante da VPR Chizuo Ozava, conhecido por Mário Japa. Acabaram pedindo a libertação de cinco companheiros e de três menores, filhos de um deles.Todos seguiram para o México.

Giovanni Enrico Bucher foi trocado por 70 presos políticos | Foto: wikipedia
Giovanni Enrico Bucher foi trocado por 70 presos políticos | Foto: wikipedia

Em 11 de junho de 1970, com a ditadura no ritmo do Prá Frente Brasil e da Copa do Mundo, VPR, ALN e MRT sequestraram no Rio de Janeiro o embaixador alemão, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, que foi trocado por 40 presos políticos, levados para a Argélia. Em 7 de dezembro de 1970, a VPR voltou a agir, capturando o embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, trocado por 70 presos políticos, levados para o Chile de Salvador Allende, onde enfrentaram um novo golpe de direita.

Enquanto a guerrilha urbana realizava expropriações e sequestros e justiçava os inimigos, militantes do PCdoB se embrenhavam pela região do rio Araguaia, preparando a guerrilha rural, buscando o apoio de camponeses. Até hoje os familiares lutam para saber como os militantes foram mortos e onde estão os seus corpos.

Os tipos de tortura

O professor Padrós é um dos historiadores que defendem a tese de que ocorreu um terrorismo de estado, ao falar da disseminação na sociedade da “cultura do medo”.  O Estado se impôs aos cidadãos com seus poderes ilimitados, transformou muitos em delatores e aplicou as piores torturas nos que sequestrou  e prendeu.

O Projeto Brasil Nunca Mais, a partir do depoimento de presos políticos, listou diversos tipos de tortura. Em 23 de outubro de 1975, 35 presos que estavam no presídio da Justiça Militar Federal de São Paulo enviaram um documento ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em que descreviam os tipos de tortura sofridos e listavam 233 torturadores.

Suzana Lisboa, membro da Comissão dos Familiares Mortos e Desaparecidos, discorre sobre as atrocidades sofridas pelos presos no texto Lembrar, lembrar, lembrar… 45 anos do golpe militar: resgatar o passado para transformar o presente, incluído na publicação do Legislativo gaúcho e da Ufrgs. Ela apresenta 20 tipos de tortura, entre as quais:

Pendurado com pés e mãos amarradas, o presos é, também, vítima de choques elétricos | Foto: Reprodução
Pendurado com pés e mãos amarradas, o presos é, também, vítima de choques elétricos | Foto: Reprodução

Pau-de-arara: um dos métodos mais antigos, em que a pessoa, despida, é obrigada a dobrar e abraçar os joelhos. Logo é passada uma barra de ferro entre os braços e as pernas, sendo logo suspensa. O torturado recebe choques elétricos, pancadas, afogamentos e queimaduras por cigarro ou charuto.

Choque elétrico: para aplicar o choque são usados vários aparelhos, como o magneto, telefone de campanha, aparelho de televisão, microfone e pianola, que teria sido trazida dos Estados Unidos por Henning Albert Boilesen para a Oban.

Cadeira de dragão: uma poltrona de madeira, recoberta com folhas de zinco, onde o torturado é sentado, ficando as pernas presas por uma trava. Na cabeça, é colocado um balde de metal, em que são aplicadas descargas elétricas. Para aumentar a intensidade do choque é jogada água sobre o preso.

Telefone: aplicação de pancada com as mãos em concha nos dois ouvidos, provocando rompimento dos tímpanos e surdez.

Sufocamento: a boca e o nariz do preso são tapados com pano ou algodão, impedindo-o de gritar, provocando sensação de asfixia.

Crucifixão: a vítima é pendurada pelas mãos ou pés amarrados, em ganchos presos no teto ou escadas. São aplicados choques elétricos e outras torturas.

Vários testemunhos confirmam que as torturas eram aplicadas com um médico presente, o qual atestava se o preso tinha condições de seguir sendo flagelado.

Perdas da resistência

Os mortos e desaparecidos pela repressão são incontáveis. Mas alguns nomes se tornaram emblemáticos. Na luta armada, dois nomes – ambos Carlos – permanecem na memória do povo como grandes líderes, mortos pelas forças do governo militar: Lamarca e Marighella.

Carlos Lamarca levou  para a luta contra a ditadura 63 fuzis FAL, dez metralhadoras INA e munição do Exército
Carlos Lamarca levou para a luta contra a ditadura 63 fuzis FAL, dez metralhadoras INA e munição do Exército

Militar, que chegou a servir nas forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), Carlos Lamarca protagonizou uma das mais espetaculares fugas do Exército. Ele, que se incumbia de distribuir panfletos políticos clandestinos nos quartéis, no dia 25 de janeiro de 1969, já como capitão, saiu do 4º Regimento de Infantaria, acompanhado por um sargento, um cabo e um soldado. Levou para a luta contra a ditadura 63 fuzis FAL, dez metralhadoras INA e munição. Filiou-se à VPR, onde conheceu Iara Iavelberg, que se tornou sua companheira na guerra contra a ditadura. A mulher de Lamarca, Maria Pavan, e os filhos foram para a Europa e depois para Cuba, onde ficaram até retornarem ao Brasil, em 1979, depois da Anistia.

Entre as ações armadas praticadas por Lamarca  está o espetacular roubo do cofre do ex-governador paulista Adhemar de Barros, em 1969. O cofre se encontrava na casa da amante de Adhemar, no Rio de Janeiro, e continha 2,5 milhões de dólares. No Rio também comandou o sequestro do embaixador suíço. Guerrilheiro urbano, Lamarca defendia a guerrilha rural. Houve um racha no que já era VAR-Palmares. Lamarca reconstituiu a VPR e passou a liderar a organização. Montou um campo de treinamento para a guerrilha, no Vale da Ribeira, em São Paulo, desarticulado pelos militares em 1970.

Lamarca e Iara trocaram a VPR pelo MR-8 em 1971. Os dois morreram na Bahia. A versão oficial, não aceita pelos familiares, foi de que ela se suicidou, em Salvador, evitando a prisão. Ele foi morto a tiros, em Ipupiara, no interior do estado.

O baiano Carlos Marighella ingressou no Partido Comunista, em 1930, aos 19 anos. Dois anos depois foi preso, pela primeira vez. Passados seis anos, mudou-se para o Rio de Janeiro. Atuava na então capital federal e em São Paulo. Em 1936, foi novamente preso e torturado pela polícia política de Vargas. Ao sair da cadeia, um ano depois, tornou-se o principal dirigente do PCB em São Paulo. Foi preso pela terceira vez, em 1939. Ficou quase seis anos na prisão. Mesmo detido, foi eleito para a direção nacional do partido.

Com a pressão externa e interna, após a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, o Brasil mudou em 1945: os presos políticos foram anistiados, o PCB se tornou legal, Getúlio Vargas foi deposto e houve eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Marighella foi eleito deputado constituinte. O registro do PCB foi cassado em 1946, tendo o partido voltado à ilegalidade. Logo depois, foi a vez dos parlamentares comunistas. Mais uma vez, Marighella  entrou para a clandestinidade.

Carlos Margihella: de deputado constituinte em 1946, pelo PCB, a líder de guerrilha contra o regime militar de 1964
Carlos Margihella: de deputado constituinte em 1946, pelo PCB, a líder de guerrilha contra o regime militar de 1964

Em 1964, o líder comunista já defendia que o PCB avançasse em suas posições e atitudes. Propôs, logo após o golpe, que o partido promovesse um levante na Vila Militar, no Rio. Foi voto vencido. Em maio foi preso pelo Dops. Resistiu à prisão, contrariando a orientação do partido. Levou um tiro na barriga. Libertado, continuou a defender a tese de que a resistência pacífica não era o caminho para derrubar a ditadura. Recusou a orientação partidária e seguiu para Cuba, onde participou da I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas). De Havana, enviou uma carta se desligando do PCB, que o expulsou. De volta ao Brasil, formou a ALN, ao lado de Joaquim Câmara Ferreira e Virgílio Gomes da Silva.

Marighella foi morto em São Paulo, numa emboscada preparada pelo delegado Felury
Marighella foi morto em São Paulo, numa emboscada preparada pelo delegado Felury

Procurado como chefe da subversão, Marighella divulgou um documento em que afirmava: “Diante da escandalosa avalanche de mentiras e acusações terrivelmente injuriosas lançadas contra mim, não tenho outra atitude a tomar senão a de responder à bala ao governo e às suas asquerosas forças policiais, empenhadas na minha captura, vivo ou morto”. E prometia: “Agora não será como em 1964, quando eu estava desarmado e a polícia disparou sem que eu pudesse pagar com a mesma moeda”.

No ano seguinte escreveu o Minimanual do guerrilheiro urbano. A perseguição a Marighella se intensificou após o sequestro do embaixador norte-americano. Caiu numa armadilha preparada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que obteve a informação sobre o local de encontro com o líder guerrilheiro, depois de torturar os freis dominicanos Ivo e Fernando. Marighela foi morto a tiros, em São Paulo, no dia 4 de novembro de 1969.

Pelos menos três outros nomes são lembrados pelos brasileiros: Vladimir Herzog (Vlado), Manuel Fiel Filho e Rubens Paiva. O jornalista Vlado e o operário Manuel foram mortos no DOI-Codi paulista. No caso do jornalista, os órgãos de segurança montaram uma farsa em 1975, dizendo que ele havia se suicidado. A foto de Vlado na cela desmontou a farsa. Ele trabalhava na TV Cultura quando se apresentou no Departamento para prestar esclarecimentos. Acabou morto sob tortura.

O operário metalúrgico Manuel Fiel Filho foi preso por dois agentes do DOI-Codi, no dia 16 de janeiro de 1976. Vinte e quatro horas depois estava morto. Os policiais voltaram a recorrer à simulação, informando que ele havia usado as próprias meias para se enforcar. As marcas no corpo não deixavam dúvidas de que ele havia sido morto sob tortura.

Rubens Paiva tornou-se o símbolo dos desaparecidos. Deputado federal pelo PTB de São Paulo, foi relator da CPI que investigou as atividades do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que recebiam verba de empresários nacionais e internacionais, interessados na queda de João Goulart. Desapareceu em 1971. Só recentemente, em depoimento à Comissão da Verdade, o torturador Paulo Malhães admitiu que Rubens Paiva foi morto. Seu corpo teria sido enterrado em uma praia e posteriormente exumado e jogado no mar.

Repressão e resistência no Rio Grande do Sul

IPMs, prisões, expurgos e cassações começaram no Rio Grande do Sul tão logo Jango partiu para o exílio e o governador Ildo Meneghetti retornou de Passo Fundo para Porto Alegre. Opositores na Assembleia e nas Câmaras de Vereadores foram cassados, sindicalistas, presos, e, na Universidade, em 1964, os primeiros 17 professores foram aposentados ou exonerados. Com os parlamentares contrários ao regime cassados e o governador nomeado pelo governo federal, os poderes executivo e legislativo passaram a dar apoio aos militares.

Pedro Seelig (C): o Fleury gaúcho
Pedro Seelig (C): o Fleury gaúcho

Os presos políticos, no estado, eram enviados para vários locais utilizados como prisão política. Até a sede do Serviço Social de Menores (Sesme) e a Divisão de Trânsito e a Escola Paulo da Gama, em Porto Alegre, foram transformadas em prisão. O Dops se encarregava da repressão policial, feita pela polícia civil. Diorge Konrad, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), lembra que a repressão no país se dava através do Sistema de Segurança Interna (Sissegin), que articulava todas as forças policiais e militares. “Este sistema começa pela informação (SNI), se articula com os três órgãos militares (CIE, Cisa e Cenimar) e mais o Dops. Todos atuavam articulados com o Dops”, diz ele. “Por isso, temos, a partir da Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul, figuras polêmicas como a do Pedro Seelig, considerado o Fleury gaúcho”. Konrad cita ainda “a ação de Pedro Américo Leal, secretário de Segurança do estado, no auge da repressão”.

Para o professor de UFSM, Pedro Seelig e Pedro Américo Leal representam a repressão no Rio Grande do Sul, terra natal de três generais-presidentes – Ernesto Geisel, Emílio Garrastazu Médici e Arthur da Costa e Silva. Diorge chama a atenção para o caminho percorrido pelos presos políticos no RS, confirmando a articulação entre órgãos militares e estaduais: “primeiro eles iam para as auditorias militares em Santa Maria, Bagé e Porto Alegre e daí diretamente para as prisões”. Em Santa Maria, dois locais funcionavam como presídios: o quartel do 29º Batalhão de Infantaria Blindado e o da Brigada Militar. Dos quartéis seguiam para o Dops em Porto Alegre.

Em sua dissertação Terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982), apresentada ao PPG em História da Ufrgs, Caroline Silveira Bauer relata que as mudanças ocorridas no Dops, após o golpe de 1964, visavam a “adequá-lo aos ditames da doutrina de segurança nacional e ao processo de militarização da sociedade”. Também visavam a ajustá-lo ao aprimoramento do “aparato repressivo da ditadura brasileira”. Para se aperfeiçoar no combate aos “subversivos”, membros da secretaria de Segurança eram enviados a outros estados e aos Estados Unidos.

Dos quadros do Dops/RS constavam médicos, que tinham, segundo Caroline, duas funções: um grupo se destinava a acompanhar as torturas, reanimar os torturados e orientar os torturadores sobre o que as técnicas aplicadas poderiam causar aos presos; o outro, a dar laudos falsos de necropsia, confirmando as versões policiais.

Em entrevistas ao Sul21, os ex-presos políticos João Carlos Bona Garcia e Antônio Losada contaram as torturas sofridas no Dops. Bona lembra que esteve preso em três lugares, mas foi no Departamento onde sofreu as piores torturas. Losada diz que a tortura não é feita apenas “para arrancar confissões, mas para te destruir”.

Antônio Losada: “Quando se concretizou o golpe, fomos três, quatro mil pessoas para a frente do III Exército pedindo que nos dessem armas. Mas o comandante vacilou” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Antônio Losada: “Quando se concretizou o golpe, fomos três, quatro mil pessoas para a frente do III Exército pedindo que nos dessem armas. Mas o comandante vacilou” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Bona e Losada são exemplos de gaúchos que resistiram à ditadura.  No texto Losada, não olhe para trás, incluído no segundo volume de A Ditadura Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985, ele esclarece que o enfrentamento vinha desde o início do golpe. Sindicalista, conta: “Quando se concretizou o golpe, fomos três, quatro mil pessoas para a frente do III Exército pedindo que nos dessem armas. Mas o comandante vacilou”. Naquele momento, corria o boato de que o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, teria armas no porão da prefeitura. “Não tinha, não!”, afirma.

Manuel Raimundo Soares: morto no Dops foi encontrado com os pés e as mãos amarradas, boiando no  rio Jacuí
Manuel Raimundo Soares: morto no Dops foi encontrado com os pés e as mãos amarradas, boiando no rio Jacuí

Um dos casos mais conhecidos de tortura e morte, ligados ao Dops, foi o do ex-sargento do Exército Manuel Raimundo Soares. Ao ser preso, em 1966, ele foi levado para a prisão da Polícia do Exército. Depois para o Dops, à Ilha do Presídio e novamente ao Dops. Foi torturado e morto. Seu corpo apareceu boiando no rio Jacuí, com os pés e as mãos amarradas às costas. Em sua dissertação, Caroline aponta duas outras mortes, relacionadas à ação do Dops: a de Avelmar Moreira de Barros, em 1970, e de Luiz Alberto Pinto Arébalo, menor de idade sem militância política, em 1973. Arébalo, conhecido como Beto, era filho de criação do delegado Pedro Seelig.

No estado atuaram, além de organizações nacionais, ligada à luta armada, como ALN, VPR e VAR-Palmares, grupos formados por gaúchos, que não foram além das divisas do RS. Um exemplo é o Marx, Mao, Marighella e Guevara (M3G), fundado por Edmur Péricles Camargo, o Gauchão.

Duas entre as muitas ações de luta armada são lembradas pelos gaúchos. Uma realizada em Porto Alegre. Outra, em Três Passos, no interior do Estado. Juntos, VPR e MR 26 de julho (MR-26) decidiram sequestrar o cônsul norte-americano na capital gaúcha, Curtis Carly Cutter, seguindo o exemplo dos sequestros dos embaixadores no centro do país. A tentativa frustrada ocorreu em 4 de abril de 1970.

Ex-coronel do Exército e defensor dos ideais de Leonel Brizola, Jefferson Cardim de Alencar Osorio e seu grupo, formado na sua maioria por militares cassados, ocuparam, em março de 1965, o quartel de Três Passos, a quase 500 quilômetros de Porto Alegre, e a rádio da cidade, pela qual convocaram a população a lutar contra a ditadura. Tropas do Exército foram enviadas a Três Passos. Cardim foi preso. Anistiado, reformou-se no posto de general.


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