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28 de abril de 2019
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11:43

Emir Sader: Esquerda ainda não tem defesa nem estratégia para enfrentar guerras híbridas

Por
Sul 21
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Emir Sader lançou o livro ˜Lula e a esquerda do século XXI”, na sede da Fetrafi-RS. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marco Weissheimer

As gerações que aderiram à militância política pela crítica radical do capitalismo e a luta pelo socialismo vivem em um mundo hoje onde o socialismo não está na agenda contemporânea como alternativa imediata de poder e em uma situação de defensiva estratégica que só encontra similaridade na ofensiva da direita radical na Europa nos anos 1930. A correlação de forças é muito desfavorável, pode-se contar com governos de alguns países da América Latina, com partidos daqui e alguns poucos de outras regiões do mundo. Tudo parece menos heróico, mas nada é menos trabalhoso e não exige menos da militância política, colocando uma exigência inadiável: compreender as transformações regressivas que o mundo viveu nas últimas décadas, “procurando encontrar os espaços e as forças que permitam elaborar projetos de transformação radical de um mundo capitalista esgotado”.

É assim que Emir Sader, sociólogo e militante de esquerda desde sempre, conclui o texto de introdução ao seu mais recente livro, “Lula e a esquerda do século XXI. Neoliberalismo e Pós-neoliberalismo no Brasil e na América Latina” (Laboratório de Políticas Públicas/UERJ), que foi lançado em Porto Alegre na última sexta-feira (26), na sede da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras do Rio Grande do Sul (Fetrafi-RS). Não é um livro sobre Lula, mas sim sobre a luta anti-neoliberal na América Latina e no mundo, explica o autor.

Na tarde de sexta-feira, Emir Sader conversou com o Sul21 sobre o objeto de seu novo livro e sobre o presente político brasileiro. A conversa coincidiu com a divulgação das primeiras imagens da primeira entrevista que Lula concedeu (à Folha de S.Paulo e ao El País), após um ano de prisão na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Entre as tarefas que o sociólogo coloca para a esquerda no atual contexto de regressão política, social e cultural, uma das principais está no plano do entendimento. Há várias coisas que devem ser melhores compreendidas, a começar com o que aconteceu no Brasil que permitiu a eleição de Bolsonaro:

“Eu acho que se escreveu muito pouco sobre o que aconteceu, pelo tamanho da crise, da virada conservadora e da derrota que sofremos. É preciso refletir mais sobre isso e pegar melhor o fio da meada, analisar a correlação de forças, elementos de força e de fraqueza de um campo e de outro. Isso está pendente”.

“Não é um livro sobre o Lula, mas sobre a luta anti-neoliberal”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Qual o tema central e o caminho de análise que seu livro propõe a respeito do que Lula representa para a esquerda do século XXI?

Emir Sader: Não é um livro sobre o Lula, mas sobre a luta anti-neoliberal. O Lula foi quem melhor captou as condições dessa luta e se projetou em escala mundial como um dos maiores líderes de toda essa geração. O livro faz uma análise da virada conservadora no mundo e como a América Latina foi uma vítima privilegiada dessa virada, com um capítulo especial sobre o Brasil. Não fala de futuro de médio prazo porque a situação está realmente em aberto. Eu acho que se escreveu muito pouco sobre o que aconteceu, pelo tamanho da crise, da virada conservadora e da derrota que sofremos. É preciso refletir mais sobre isso e pegar melhor o fio da meada, analisar a correlação de forças, elementos de força e de fraqueza de um campo e de outro. Isso está pendente.

É uma luta que continua. A mais prolongada e profunda crise da história brasileira teve um desenlace imediato que não superou a raiz da crise. Essa raiz é o modelo neoliberal que não permite conquistar bases sociais que garantam um mínimo de estabilidade. Macri despencou, Temer despencou e o Bolsonaro também tende a despencar. Mas é uma situação nova que precisa ser melhor analisada. Eles blindaram esse governo para fazer com que ele sobreviva ao menos quatro anos e têm instrumentos de manipulação, como fizeram na eleição passada, que permitir que sobrevivam.

Sul21: O que explica, na sua opinião, essa virada conservadora que aconteceu em nível internacional?

Emir Sader: É uma virada de período histórico. Passamos de um mundo bipolar para um mundo unipolar sob a hegemonia imperial americana. Saímos do ciclo longo expansivo mais profundo do capitalismo para um ciclo recessivo que não tem prazo para terminar. Também saímos de um modelo meio de bem estar social para um modelo liberal de mercado. Esses são três fatores muito negativos que explicam essa virada. O fim da União Soviética consolidou isso, desmoralizando não só o socialismo, mas o Estado, a Política, os partidos e as soluções coletivas. Foram questionados os fundamentos de um período histórico por meio dos quais a esquerda atual se constituiu, abrangendo aí também a luta política sindical e parlamentar.

Ao mesmo tempo, a via insurrecional se esgotou na América Latina. Estamos condenados a reabrir espaços na luta democrática em condições que ainda não estão claras. O livro “Guerras Híbridas” (Expressão Popular), de Andrew Korybko, aponta a atual estratégia da direita em escala mundial, em relação à qual ainda não temos defesas nem no plano jurídico nem no plano digital, que foram dois lugares onde levamos bolas nas costas. Podemos usar robôs, mas não podemos espalhar mentiras. Como é que vamos nos defender de coisas dessa ordem? Ainda não temos defesa nem estratégia para isso. Evo Morales perdeu aquele referendo sobre o direito de se candidatar de novo porque algumas semanas antes da votação foi espalhada a notícia de que ele teria tido uma amante loira com a qual teria tido um filho, que ele não saberia nem se estava vivo ou não. Era tudo mentira, mas, em um período eleitoral, isso te coloca na defensiva.

Sul21: Você falou em uma blindagem construída em torno do governo Bolsonaro. No entanto, desde o início ele vem sendo marcado por inúmeros conflitos e desacertos internos, envolvendo inclusive o vice-presidente, o general Hamilton Mourão. Qual a espessura dessa blindagem na sua opinião? Como vê a possibilidade de uma ruptura dentro do governo?

“O governo possui um núcleo militar, um núcleo neoliberal e um núcleo do estado policial comandado pelo Moro”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

 Emir Sader: O candidato da direita era qualquer um menos o PT. Como quem tinha votos era o Bolsonaro, já que a base dos tucanos se bandeou para a direita, acabou sendo ele mesmo o candidato. Mas, como dizia o Didi, jogo é jogo, treino é treino. Campanha é uma coisa, governar é outra. Quem se prestou para a campanha foi ele, mas agora se vê que não se presta para governar. E a relação com os filhos é algo mais profundo para Bolsonaro. Ele diz que Carlos o elegeu. Os filhos estão lá meio que para denunciar possíveis traições lá dentro. O governo está constituído, possuindo um núcleo militar, um núcleo neoliberal e um núcleo estado policial com o Moro. Se Bolsonaro fosse afastado, não mudaria muita coisa desta configuração, mas tirá-lo é uma operação muito delicada.

Creio que estão tentando blindar o poder do Estado para tentar impedir uma nova vitória eleitoral da esquerda. Por meio de que vias vão fazer isso eu não sei. Pode ser pelo fim do voto obrigatório, adoção do voto distrital, parlamentarismo ou alguma outra coisa, mas, sobretudo, por meio do Estado policial. Moro, além dos instrumentos que tem, também centralizou a Receita Federal, o que abre a possibilidade de perseguir, bloquear ou condenar adversários também por meio desse mecanismo. Os militares não tem mais nada de nacionalistas. Estão ligados à ordem, à hierarquia e, eventualmente, à repressão. São eles que garantem estabilidade institucional para Bolsonaro. A escolha por Paulo Guedes foi um casamento com o modelo neoliberal que define o eixo fundamental do governo.

Sul21: Como está vendo a capacidade de resistência da esquerda de um geral nestes primeiros quatro meses de governo? Ela está conseguindo colocar em prática o discurso da necessidade de uma ampla unidade?

Emir Sader: Acho que o problema central não é a unidade, mas sim a capacidade de iniciativa política. A derrota foi muito dura. Derrubaram a Dilma, prenderam o Lula e ganharam a eleição. Foi um golpe político e moral muito forte. Mas não há nenhuma dinâmica de ruptura ou de divisão profunda dentro da esquerda. A esquerda está unida mas o somatório de toda a esquerda ainda é muito pouco. Falta iniciativa. Quando a esquerda polarizou, ela teve força. Atualmente, o cenário político está marcado pelas contradições deles, não nossas. É preciso denunciar e responder o que eles falam, mas só isso é insuficiente e só reitera a centralidade das iniciativas do governo, não colocando a esquerda como alternativa de programa de governo e de projeto para o país. Isso tem que ser retomado.

Perdemos muita capacidade de influência. Temos os governadores do Nordeste, a bancada federal e a liderança política do Lula. Só que isso esta desarticulado. Quem deveria ter esse papel de articulação é o PT que está hoje em um nível abaixo das nossas necessidades. As frentes (Brasil Popular e Povo Sem Medo) fazem o que elas podem. Acho que elas são muito mais interessantes do que aquelas frentes que reúnem partidos políticos numa mesa. Agora, você não tem um discurso para convocar as pessoas. O discurso da denúncia não é suficiente. Essas frentes servem para mobilizar e conscientizar, mas não são eixo de um projeto hegemônico de esquerda. O PT é o único partido de presença nacional, mas não está se mostrando a altura de formular uma nova estratégia.


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