Economia
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1 de setembro de 2022
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09:29

A alta da inadimplência e suas repercussões econômicas e políticas (por Flavio Fligenspan)

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

As instituições que medem inadimplência, tanto as públicas (Banco Central), como as privadas (Serasa Experian e outras), têm acusado um aumento desta variável nos últimos meses para o caso das pessoas físicas. Nem se esperava algo diferente diante da inflação elevada e de um mercado de trabalho que está se recompondo lentamente e com muitas vagas geradas na informalidade, o que deprime o rendimento médio real. Para piorar o quadro, há muita gente classificada como subutilizada no mercado de trabalho, dentre estes uma boa parte que gostaria de trabalhar mais horas para ganhar mais, mas as empresas não lhes proporcionam esta opção. Há portanto, uma dicotomia entre criação de vagas, que tem melhorado, e rendimento médio ainda frágil.

A combinação de preços em alta e renda baixa deixa as famílias, especialmente as mais pobres, diante da escolha entre comprar o básico para a sobrevivência diária e pagar as contas regulares ou mesmo as já atrasadas. No primeiro grupo estão as despesas com alimentação e transporte, por exemplo, e no segundo, as com serviços de utilidade pública (gás, telefone, internet, água e energia), com o varejo e com o sistema financeiro (prestação da casa própria, cartão de crédito e outras formas de empréstimos pessoais). A escolha óbvia é pela sobrevivência, o resto se empurra para o futuro, ainda que isto signifique ter seu nome relacionado nos cadastros de maus pagadores, o que inviabiliza as compras no crediário.

O movimento da inadimplência durante o período da pandemia foi bem curioso, pois a variável cresceu logo nos primeiros meses, o que era esperado, mas caiu bastante nos meses seguintes, no intervalo entre o meio do ano de 2020 e o meio de 2021. Esta queda reflete ajustes no orçamento das famílias, mudanças de hábitos de consumo diante da necessidade de distanciamento social – o que acarretou menores gastos com serviços –, o pagamento do Auxílio Emergencial e a postergação da cobrança por parte dos credores. Estes logo entenderam a impossibilidade de receberem as prestações, pela interrupção do fluxo de renda dos devedores, e “seguraram” os registros de inadimplência. Frente à situação excepcional, era melhor receber no futuro do que constranger os clientes com cobranças que não teriam êxito. Além disso, houve medidas legais que proibiam o corte dos serviços essenciais durante a pandemia.

Ocorre que postergar não é perdoar a dívida e chegaria o dia em que se cobrariam os atrasados. Este tempo chegou desde a segunda metade de 2021, quando avançou a vacinação e começou a se retomar a atividade econômica. O problema é que este momento veio acompanhado da forte alta dos preços e da recuperação lenta do mercado de trabalho. Como pagar as prestações atrasadas, somadas às do presente, com inflação alta e emprego e renda andando devagar? Para piorar, desde março de 2021 começou um novo ciclo forte de alta dos juros; em março de 2021 a taxa básica era de 2% ao ano e agora chegamos a quase 14% ao ano, com repercussão ampliada nas taxas do mercado de crédito. Desta forma, as dívidas antigas passaram a ser corrigidas com taxas de juros mais altas. E ainda houve famílias que se endividaram com crédito caro para pagar as contas vencidas dos serviços básicos, criando uma “bola de neve”.

Assim, não havia outro resultado possível a não ser o aumento da inadimplência. A Serasa Experian, por exemplo, registra atualmente 66,8 milhões de inadimplentes, 4,6 milhões a mais que o número de agosto do ano passado, representando 41,4% da população adulta do Brasil e um valor total de R$ 281 bilhões em dívidas. São números impressionantes, sem dúvida. Já o Banco Central, medindo o percentual da carteira de crédito livre do Sistema Financeiro Nacional com pelo menos uma parcela com atraso superior a 90 dias, chega a 5,2% apenas para pessoas físicas. No melhor momento da pandemia, no segundo trimestre do ano passado, esta taxa girava em torno de 4%. Observe-se que o percentual pode parecer pequeno, mas se trata de uma parcela de todas as operações da carteira de crédito com pessoas físicas do país.

Com este nível de passivos, que trava a retomada de uma vida financeira mais “normal” das famílias, fica mais fácil entender porque as diversas medidas eleitoreiras do atual governo – liberação de parcela do FGTS, antecipação do 13º salário de aposentados e pensionistas, redução de impostos sobre energia e combustíveis e Auxílio Brasil ampliado até dezembro – não surtem o resultado esperado. Mesmo que haja efeitos positivos sobre a inflação, inclusive com deflação mensal em julho, os preços dos produtos básicos continuam muito elevados e as contas atrasadas pesam demais nos orçamentos. Para as famílias mais pobres, por exemplo, as mais endividadas, o item Alimentação no domicílio, que tem um peso grande nos seus orçamentos mensais, acumula 17,5% de aumento nos últimos 12 meses até julho, dado mais recente. A inflação (IPCA cheio) acumula 10,1% no mesmo período. O fato é que estas famílias não se beneficiam diretamente da redução dos preços dos combustíveis – ao contrário do gás de cozinha e da energia elétrica –, mas sofrem os efeitos da alta da alimentação. Ou seja, a redução do IPCA cheio não aparece claramente para estas famílias, tanto mais se elas estão lidando com um endividamento alto. É importante notar que este endividamento não compõe a cesta de consumo do IPCA, mas tem pesado, e muito, na conta do final do mês, tanto mais com taxas de juros em forte elevação.

Não é por acaso que Lula e Ciro Gomes têm propostas para equacionar o problema da inadimplência. Por um lado, há um apelo eleitoral óbvio nesta medida, mas, por outro, trata-se de uma condição necessária para a retomada da atividade em 2023. Este enorme número de famílias que estão inviabilizadas de participar do consumo do país, especialmente do consumo que depende do crédito, trava boa parte da recuperação esperada para o ano que vem. É urgente, inclusive para os credores, renegociar estas dívidas, diminuir as estatísticas de inadimplência e recuperar o poder de compra das famílias.

Em troca, Bolsonaro oferece crédito consignado para os beneficiários do Auxílio Brasil, uma excrecência financeira de tal ordem que o sistema financeiro privado a está rejeitando. Os grandes bancos não querem operar com esta linha, pois avaliaram que correm três riscos: o da inadimplência, pois não há garantia do pagamento do Auxílio com o valor atual depois de dezembro; o jurídico, pois a Justiça pode considerar indevido o pagamento das famílias que têm ameaçada sua sobrevivência; e o de imagem, pelo entendimento da sociedade de que o sistema financeiro estaria lucrando com o sacrifício dos mais pobres.   

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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