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19 de dezembro de 2012
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08:00

Festa no covil

Por
Sul 21
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Festa no covil
Festa no covil

Ando me sentindo muito chato ultimamente. Leio os livros badalados na imprensa e acho tudo uma droga. Aí venho aqui e escrevo notinhas sarcásticas. Isso piora meu humor. Se sigo assim, vão achar que não gosto de nada, nem de filé com fritas e mulher bonita. Não lembro bem, mas acho que o único autor de quem falei bem este ano foi o Kazuo Ishiguro, mas com ressalvas. Ou foi ano passado? Droga, será que minha sina é reler os clássicos?

Então, dia desses, me emprestaram a Festa no covil, do Juan Pablo Villalobos. Li numa sentada. Villalobos é fluente e engraçado, pra quem gosta de humor negro, como eu. Mais: faz uma coisa que o pessoal que mexe com literatura parece ter esquecido, contar de modo indireto, aludir, não discursar. Se o livro não fosse bom, a cena final o salvaria. Coisa de mestre a coroação. Certo, não direi mais uma palavra. Vão ler antes.

Vejamos. Em 2666, Roberto Bolaño empilha dezenas de cadáveres em La parte de los crímenes. São 348 páginas, na edição da Anagrama. São sem dúvida as 348 páginas mais chatas que li na minha vida. Mais: estão entre as menos eficazes. É óbvio, me parece, que se Bolaño contasse direito a história de um assassinato, apenas um, teríamos uma visão mais profunda da violência no México. Resumindo a história de dezenas, não temos nada. Não temos gente, não temos drama. Só temos estatísticas. É preciso uma imaginação monstruosa pra se emocionar com estatísticas. Estatísticas ficam bem em gráficos, no jornal. Num romance o que fica bem são personagens levados às últimas consequências. É o que vemos na Festa no covil.

Villalobos não mostra nenhum assassinato direto. Mostra um menino, que não entende direito o que se passa, falando de sua vidinha trancado em casa, do seu aprendizado do machismo, das brincadeiras com o pai, como contar o número de furos de bala nas paredes das casas. Villalobos não precisou de muito mais. Sentimos nessas poucas páginas um México assustador e um menino no meio dele, sem poder confessar o medo nem a si mesmo.

Querem contas? Com 73 páginas bastante arejadas, na edição da Companhia das Letras, Villalobos bota no chinelo as 348 compactas do Bolaño. Isso me alegra, como uma boa vingança. Porque em 2666, escondido atrás de um personagem, Amalfitano, Bolaño faz a defesa dos romanções torrenciais. Traduzo o trecho: “(o jovem farmacêutico) preferia claramente, sem discussão, a obra menor à obra maior. Escolhia ‘A metamorfose’ em vez de ‘O processo’, escolhia ‘Bartleby’ em vez de ‘Moby Dick’, escolhia ‘Um coração simples’ em vez de ‘Bouvard e Pécuchet’, e ‘Um conto de Natal’ em vez de ‘História de duas cidades’ ou de ‘O clube Pickwick’. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Já nem os farmacêuticos ilustrados se atrevem com as grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminho no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de esgrima de treinamento, mas não querem saber nada dos combates de verdade, onde os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acovarda e confronta, e há sangue e feridas mortais e fetidez”.

Que papo é esse de que contos e novelas são exercícios, aquecimentos, e que romanções são os combates de verdade? A grandeza e a pequenez de uma obra não são medidas pela quantidade de palavras, mas pela eficácia com que essa obra dá conta do seu tema, ou “daquilo”. Se eu precisasse de provas pra refutar a tirada de Bolaño, bastava comparar La parte de los crímenes com a Festa no covil. Querem uma frase? Lá vai: 2666 é muita digitação e pouca literatura, a Festa no covil é pouca digitação e muita literatura.

Eu andava interessado nos textos críticos do Bolaño. Depois dessa, esfriei. Como alguém capaz de um raciocínio desses pode ser considerado um dos grandes herdeiros do Borges? Acho que sei. As vuvuzelas da crítica não leram Borges direito.

Arca de Noé

Uma história que me dava o que pensar, na infância. Quarenta dias de chuva, Noé sem baralho, a mulher dele sem tricô. Pra piorar, as roupas úmidas, o cheiro do cocô dos bichos. As histórias bíblicas são sensacionais, mas são como desenhos animados, onde se pode dobrar uma casa inteira e botar dentro da carteira.


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