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26 de dezembro de 2012
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10:25

Dom Quixote e os homens sérios

Por
Sul 21
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Acho incrível que ainda hoje muita gente veja o humor com suspeita. Houve quem me dissesse que eu diminuía a estatura do Dom Quixote ao afirmar que era um grande livro de humor, porque ele tem muitas coisas além da graça. É claro que tem. O humor não vive só de piadas de sogra ou papagaio, como as tragédias não vivem só de pilhas de cadáveres ou de baldes de sangue. Há autores, como Cervantes, que através do humor revelam o que o homem tem de mais secreto, nossa mistura indissociável de comédia e tragédia. Se não fosse assim, Virginia Wolff não teria chorado todas as vezes que leu Cervantes.

Pra amparar meu argumento, chamo um irmão mais velho e mais forte, Alberto Moravia: “Sempre preferi livros cômicos a livros trágicos. Minha grande ambição é escrever um livro cômico, mas, como os senhores sabem, é o gênero mais difícil de todos. Quantos deles existem? Quantos a gente pode citar? Não muitos: Dom Quixote, Rabelais, The Pickwick papers, O asno de ouro, os Sonetos de Belli, Almas mortas, de Gogol, Boccacio e o Satyricon… Eis aí os meus livros ideais”.

Se Moravia está certo, se o cômico é o gênero mais difícil, como fica a tradução dele? Não penso que um tradutor tenha de ser um humorista pra encarar Cervantes, mas alguma intimidade com o gênero certamente ajuda. Cotejando o original com a tradução dos viscondes de Castilho e Azevedo, descobri que dezenas de piadas foram estragadas, em geral porque se perderam a concisão e a agilidade. E muitas vezes os nobres portugueses nem notaram que era uma piada. No capítulo XII, do primeiro volume, um pastor diz “estil” e Quixote corrige: “estéril”. O pastor responde: “Estéril ou estil, sai tudo pelo mesmo lugar”. Os nobres: “Estéril ou estil, tudo vem a dar na mesma”. Não me parece que haja dúvida sobre o endereço.

Todo o humor da cena dos moinhos de vento, por exemplo, está na ação. Traduzi-la não é, então, mais complicado que traduzir uma cena trágica. Basta não estropiar a desenvoltura do texto. Mas o Quixotetem muitos jogos de palavras. Mesmo o espanhol e o português sendo línguas muito parecidas, grande parte dessas brincadeiras se perde se você não tem a ousadia e a astúcia de recriar.

No capítulo XXVI, do segundo volume, depois que dom Quixote destroça a espadadas o teatro de bonecos, mestre Pedro diz, literalmente: “Com que me lpagasse o senhor dom Quixote alguma parte das feituras que me desfez…”. Quantos de nós entendemos a piada sem consultar o Houaiss? Mesmo entendendo, temos outro problema: a palavra “feitura” perdeu seu ambiente, se tornou um tanto ridícula. Então parti pro drible: “Se o senhor dom Quixote me pagasse uma parte do que seu feito desfez…”.

Há também piadas que dependem de nosso conhecimento da época, dos costumes, da cultura. No capítulo XLVI, do primeiro volume, Sancho viu a suposta princesa Micomicona nuns amassos com um cavaleiro e diz algumas coisas “con perdón de las tocadas honradas!”. Veja, em espanhol, “tocada” e “toucada” são uma só palavra. Depois, há o veneno da língua do Sancho. Como as damas honradas usavam touca, surgiu a expressão “com perdão das toucas honradas”, que equivale a “me perdoem as senhoras presentes”. Com o jogo de palavras perdido em português, tentei salvar o veneno: “diga-se com perdão das honradas… cortesãs”. Veja bem, fui obrigado a uma pausa, pra sublinhar o duplo sentido de cortesã, coisa que “tocada” faz com uma das mãos nas costas.

Por falar em Sancho, há os ditados dele, verdadeiras enxurradas. Há ditados espanhóis de compreensão imediata no Brasil, alguns até são os mesmos com um que outro jogo de corpo, mas há muitos que não fazem sentido nenhum, ou perdem as rimas e a graça. Gastei horas e horas de pesquisa atrás de ditados equivalentes. Equivalentes, note-se, não só no sentido, mas no humor, na agilidade. Umas duas ou três vezes, no desespero, tive de adaptar, como no caso de “não importa com quem nasces, mas com quem paces”, que se tornou “não importa a casta, mas com quem se pasta”.

E as expressões? Na cena famosa do escrutínio da biblioteca, o padre manda a criada queimar os livros grandes. Aí se descreve, literalmente: “Não se disse a tonta nem a surda, mas a quem tinha mais gana de queimá-los que de tecer um pano, por grande e fino que fosse”. “Echar una tela” é tecer um pano e ao mesmo tempo fazer amor. Os viscondes: “Não o disse a nenhuma tonta nem surda, que mais vontade tinha ela própria de os ver queimados que de botar ao tear uma teia, por grande e fina que fosse”. “Tela” também pode ser teia, mas cadê o sentido aqui? E a graça, cadê? Penso ter ficado mais perto deles: “Não falou a boba nem a surda, mas a quem tinha mais gana de queimá-los do que pintar e bordar, fosse lá o quê ou com quem”.

Por esses exemplos, fica claro que uma tradução não é uma luta que a gente ganha por nocaute, mas por pontos. Daí a necessidade de tentar não desperdiçar nenhum pontinho.

Romanções e romancinhos

Talvez eu não tenha sido claro, coisa que considero imperdoável, daí a voltar a esse assunto pouco divertido. Não faço o negativo do Roberto Bolaño, quer dizer, não defendo os livros curtos contra os longos. Não estou nem aí pro número de páginas de um livro. Eu só espero que ele seja bem escrito. Mais nada. Defender um livro apenas pelo número de páginas me parece uma das superstições mais pitorescas.

Outra coisa: discordo do Charlles Campos quando ele diz que meu ataque à “Parte dos crimes” de 2666 foi gratuita, que bastava eu elogiar a Festa no covil. Como a “Parte dos crimes” e a Festa no covil tratam, entre outras mumunhas, da violência no México, me sinto à vontade pra comparar. Nesse caso, achei Bolaño ineficaz e Villalobos contundente. Mais: apontei meus motivos pra achar isso. Mas, coisa nada estranha, a discussão ficou apenas na gozada que dei no Bolaño.


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