Notícias
|
23 de outubro de 2011
|
09:46

O Maçambique de Osório e a Festa do Rosário

Por
Sul 21
[email protected]
Importante data no calendário festivo e religioso do Rio Grande do Sul, a Festa de Nossa Senhora do Rosário, comemorada anualmente na cidade de Osório, aconteceu, este ano, entre os dias 06 e 09 de Outubro | Foto: Lucas Luz/Especial Sul21

Lucas Luz

Osório, terra dos ventos. Terra litorânea da passagem de soslaio pras praias nortes gaúchas, tão mal faladas mas tão preenchidas quando do calor do verão. Terra das águas das lagoas. Terra dos Maçambiques. E são eles os responsáveis, provavelmente, pelos primeiros registros sobre o município, quando este ainda se chamava “Vila da Serra” e, após, “Conceição do Arroio”. Registros estes elaborados por Antônio Stenzel Filho, no livro A Vila da Serra – Conceição do Arroio, escrito ainda no século XIX, e As Congadas do Município de Osório, publicado no ano de 1945 e escrito pelo professor e folclorista Dante de Laytano.

O Maçambique de Osório é uma congada gaúcha, tradição afro-católica praticada por negros devotos a Nossa Senhora do Rosário, que pagam promessa para graças atendidas | Foto: Lucas Luz/EspecialSul21

O maçambique é uma das variações gaúchas das congadas (existem, ainda, os Ensaios de Promessa de Quicumbi, nas cidades de Mostardas e Tavares, e o Quicumbi, no Rincão dos Pretos, em Rio Pardo).  As congadas são uma tradição presente em todo o território brasileiro e que possuem origens e influências nas festas de coroação de reis negros praticadas durante o período colonial, assim como breves influências portuguesas e, dependendo do local, também indígenas. Em comum, a devoção aos santos católicos Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Nossa Senhora da Penha e Santa Efigênia. Em um difícil resumo, o Maçambique de Osório é uma congada gaúcha, tradição afro-católica praticada por negros devotos a Nossa Senhora do Rosário e que através de seus cantos, tambores e danças pagam promessa para graças atendidas pela santa.

Grupo secular, o Maçambique tradicionalmente possui dois importantes momentos ao longo do ano: a Festa de São Benedito, comemorada no segundo final de semana de maio, próximo ao dia 13, e a Festa do Rosário, no segundo final de semana do mês de Outubro, mas atualmente deslocada para qualquer um dos outros finais de semana deste mesmo mês, conforme a disponibilidade da igreja local e de acordo com o calendário da prefeitura. Nos últimos anos, a Festa de São Benedito, realizada no distrito de Aguapés, próximo a sede da cidade de Osório, não aconteceu.

O maçambique possui dois importantes momentos ao longo do ano: a Festa de São Benedito e a Festa do Rosário | Foto: Lucas Luz/Especial Sul21

Ao longo de sua existência e prática, o maçambique foi realizado em diferentes datas do calendário. Antigamente, conforme relatado por Dante de Laytano, o maçambique acontecia no período de 04 à 06 de janeiro, dentro do Ciclo de Reis, quando se comemora os Três Reis Magos. Este período também é um dos importantes momentos datados das culturas tradicionais e populares brasileiras, sendo celebrado já desde o dia 24 de dezembro, véspera de Natal. O progresso e sua dinâmica são agentes fundamentais para estas mudanças que, se não bem assimiladas e encaradas, podem prejudicar significativamente a manutenção destas práticas e ciências populares.

Festa vem perdendo tradições negras

Nos últimos dez anos, intervalo de tempo em que vivencio o maçambique e suas gentes, o grupo e a comunidade do Caravaggio, onde a maioria dos integrantes reside, é possível perceber mudanças na festa e no grupo, fundamentadas em tantas conversas com os próprios e também em leituras de materiais anteriormente produzidos por terceiros. Permanecem a fé em Nossa Senhora do Rosário e seus símbolos, assim como os ritos estabelecidos e orgânicos da prática do maçambique.

A Festa do Rosário tem início na quinta-feira, quando o mastro com a bandeira de Nossa Senhora é erguido ao lado da igreja | Foto: Lucas Luz/Especial Sul21

Organizada por um casal de festeiros, escolhidos na festa do ano anterior – e que nos últimos anos sempre gera polêmica, em virtude de imposições da igreja que mudou a tradição da escolha feita através de sorteio no copo, quando igreja, maçambiques e casal de festeiros atual indicam cada um um nome –, a Festa do Rosário atualmente parece desprender-se das tradições negras católicas do maçambique, estabelecendo-se como um evento de cunho social organizado por uma pretensa elite negra local não autêntica. Triste saber que esses mesmos festeiros, durante o decorrer do ano, não se importam e não se misturam com os negros maçambiqueiros, mantenedores e responsáveis por esta tradição.

Este ano, graças à insistência de Francisca Dias, presidente da Associação Cultural e Religiosa Maçambique de Osório e filha de Severina Dias, Rainha Ginga, a prefeitura fez o repasse da verba destinada no orçamento anual do município diretamente para o grupo, o que amenizou em pouco o tanto de contradições e equívocos dos últimos anos gerados pela igreja, casal de festeiros e poder público. Assim, os maçambiqueiros tiveram um pouco mais de controle sobre a festa em questão, podendo, inclusive, se alimentar de forma melhor, sem precisar grandes esforços.

A sexta-feira inicia-se com a mesa de doces, reverência para a rainha | Foto: Lucas Luz/Especial Sul21

A Festa do Rosário tem início na quinta-feira, quando o mastro com a bandeira de Nossa Senhora é erguido ao lado da igreja. Nesse dia, é realizada a primeira das missas com a presença dos maçambiques. Nela, não há nenhum rito diferente. Sua dinâmica não sofre interferência alguma com a presença do grupo, exceto pelo fato da coroação dos reis e alguns cantos do grupo, específicos para o momento.

Em todos os quatro dias são realizadas missas, sempre respeitando a mesma lógica cotidiana católica, com pouca interferência do maçambique e sua tradição | Foto: Lucas Luz/Especial Sul21

A sexta-feira inicia-se com a mesa de doces, reverência para a rainha. Neste ano, não ocorreram pagamentos de promessa previamente acertados. Apenas sábado pela noite, quando o grupo foi surpreendido, já no salão paroquial, onde executam parte de suas danças, se concentram, têm o reinado de seus reis montado e as refeições e bailes acontecem. Em todos os quatro dias são realizadas missas, sempre respeitando a mesma lógica cotidiana católica, com pouca interferência do maçambique e sua tradição. No domingo, pela manhã, a missa é estendida com a procissão da imagem de Nossa Senhora do Rosário, quando maçambiques e fiéis percorrem o entorno da praça, defronte à igreja, acompanhando a imagem no andor, cantando, tocando tambor e dançando em seu respeito. Pela tarde, é a procissão de arriamento do mastro que parece não queimar, mesmo com a quentura do asfalto, os pés descalços dos dançantes do maçambique.

Com a possibilidade de um maior gerenciamento e zelo pela festa, a programação da tarde de domingo foi pensada e proposta pelo próprio Maçambique. De Porto Alegre, os grupos Maracatu Truvão (grupo de percussão e dança porto alegrense que pesquisa, divulga e executa o ritmo do maracatu de baque virado, tradicional de Pernambuco) e Afro-Sul Odomodê, com seus meninos e meninas tocando e dançando, fizeram com que a festa, naquele momento, fosse mais inteira. Satisfação plena dos protagonistas, insatisfeitos com o leilão pós-almoço anualmente proposto pelos festeiros e que, com certeza, não beneficia o grupo e seus interesses.

É um grupo com origens quilombola, com integrantes em sua maior parte residentes na periferia de Osório | Foto: Lucas Luz/Sul21

Com certeza, o grupo passa por diversos problemas, esquecidos ali naqueles momentos de gozo e devoção. É um grupo com origens quilombola (Morro Alto), com integrantes em sua maior parte residentes na periferia de Osório, negros trabalhadores da construção civil, indústrias, sub-empregos. Condições estas que com o passar dos anos resultam em mudanças no grupo e em suas configurações, na Festa do Rosário e em sua dinâmica. É o progresso e a inevitável aceitação do tempo que os persegue. O que fica, é “ir pela Santa”, como ouvi de um jovem dançante, e a frenética vontade em “dar uns pulos”, quando dançam em respeito aos seus reis e sua virgem de devoção.

Para saber um pouco mais sobre as congadas gaúchas acesse www.buscandocoroa.com.br

Lucas Luz é produtor e pesquisador em culturas populares e tradicionais, e escreveu o artigo a convite do Sul21.
www.festa.inf.br


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora