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3 de setembro de 2011
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13:02

O dia em que o Papa foi a Melo

Por
Sul 21
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Aldyr Garcia Schlee. Foto - Gilberto Perin
Aldyr Garcia Schlee | Foto: Gilberto Perin

Iuri Müller

Foi uma pena, porque Melo era uma festa, antes da chegada do Papa. A gente notava nas caras das pessoas – nos gestos, nas atitudes – uma alegria sem necessidade de explicação, alguma coisa muito rica e muito viva que alguém chamaria equivocadamente de orgulho municipal ou de vaidade ufana, mas que era muito mais ou muito menos do que isso: era o júbilo dos deserdados, o regozijo dos esquecidos despertados repentinamente para um momento de confiança, para uma possibilidade de certeza.

Aldyr Garcia Schlee, Melo era uma festa

No dia oito de maio de 1988, um domingo de tempo feio, neblina e vento frio, a Negra Martiana, que não tinha nada, viu entrar pelo buraco do fogão duas galinhas e um galo, acontecimento estranho para quem vivia em um casebre, perto de terrenos baldios e de um arroio e muito longe de qualquer galinheiro. No dia oito de maio de 1988, o Papa João Paulo II esteve em Melo, na cidade do interior uruguaio onde vivia a Negra Martiana, mas ela não se lembra de ter pedido qualquer coisa ao Santo Padre. Ainda mais depois que os seus enteados percorreram meia cidade com bandeirolas e faixas brancas nos bolsos, todas elas com mensagens de boas-vindas ao Papa, e voltaram para casa sem ter vendido absolutamente nada. Mas ali estavam as duas galinhas e o galo, justamente na cozinha de quem não tinha nada, e logo no dia em que o Papa foi a Melo – dessa história, que pode ter acontecido em qualquer canto da capital do departamento de Cerro Largo, o escritor Aldyr Garcia Schlee fez um conto e o chamou, mesmo perguntando no rodapé da página se não seria muito, de “Milagre”.

João Paulo II visita Melo, no Uruguai

Aldyr, nascido em 1934 na cidade de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, não esteve em Melo naquele dia; o Papa, sim. A ausência não impediu que três anos após a visita papal o escritor se fizesse presente, quase que magicamente, em todos os lados da cidadezinha que se preparou até como não podia para receber João Paulo II – em 1991, Schlee publicou “El día en que el Papa fue a Melo” nas Ediciones de La Banda Oriental. Oito anos mais tarde, o livro formado por dez contos cujo pano de fundo é sempre a presença – ou a enorme ausência – do Papa no interior uruguaio aparece no Brasil publicado pela editora Mercado Aberto com o título “O dia em que o Papa foi a Melo”. O “Milagre” que viveu a Negra Martiana, portanto, é só um dos causos de um dia que, por curioso ou trágico, não deve nunca escapar da memória de quem esteve em Melo naquele domingo. Tudo porque os uruguaios esperavam um público de ao menos cinquenta mil pessoas e a chegada de gigantescas caravanas de católicos brasileiros – e há quem diga que não mais do que oito mil pessoas, a maioria de Melo, de fato foram ver o Papa.

Entre os personagens de Aldyr, no conto “Espelho partido” está o avô que completava 98 anos no dia em que a cidade estava impactada pela chegada do maior visitante que já havia recebido – e que, apesar das centenas de parentes e conhecidos que se aglomeravam na “grande casa alta de dezoito peças”, prefere não sair da cama de onde contemplava há horas a rachadura de um velho espelho. Talvez relembrasse, em meio ao cansaço dos últimos anos de vida, as conquistas de “uma pobre e obscura republiquinha” que há tempos havia “suprimido o ensino religioso nas escolas públicas e logo se pôde diminuir para oito horas a jornada diária de trabalho, implantar as jubilaciones, criar as pensões de velhice, garantir a assistência pública e laica aos enfermos e assegurar a gratuidade da educação nos três níveis”. E que secularizou “os juramentos oficiais, deixando de mencionar Deus e os santos evangelhos”; que garantiu “a total liberdade de culto, separando a igreja do Estado – embora não tenhamos conseguido a aprovação da semana renga, com um dia de descanso a cada seis, para acabar com o feriado de domingo por sua significação religiosa”. E lá fora estava o Papa, orando para uma multidão que não chegou.

É no conto “Melo era uma festa”, narrado por um jornalista credenciado no evento, que se encontra uma descrição do desastre que foi a preparação dos habitantes de Melo para o grandioso acontecimento; embora ficcional, o texto de Aldyr não destoa de outros relatos sobre aquele domingo que, apenas para uns poucos, ainda é lembrado com alegria: “a verdade é que nada deu certo no dia em que o Papa foi a Melo – pelo menos para a pobre gente que mais esperava de sua visita. Foi tudo tão rápido e inesperado como um milagre, mas um milagre às avessas: quando se viu, o que se queria que acontecesse, o que tinha que acontecer, o que era certo que ia acontecer, não aconteceu; e em seguida não dava mais para acontecer. O Papa veio se foi; e pronto! Quando recém o leitãozinho de estimação começava a pingar graxa no braseiro, quando os primeiros chouriços caseiros pegaram a dourar e a estalar, o homem já tinha ido embora e todo mundo se foi – se foi sem almoçar nem nada –, e ficou só a terra vermelha e pisoteada da esplanada coberta de lixo barato”.

O filme 'O Banheiro do Papa', dirigido por César Charlone e Enrique Fernández, assim como o livro de Schlee, também trata dos preparativos para a chegada do Papa em Melo | Foto: Divulgação

Vinte e três anos depois, não em maio, mas já nos últimos dias de agosto, Melo outra vez se preparou para grandes recepções e para atrair os olhares de toda a República Oriental; no entanto, agora os seus habitantes não se organizaram, com tendas e mesas improvisadas, no trajeto do Papa. Tampouco foram assadas toneladas de chorizos, calientitos, panchos e hamburguesas. Os forasteiros, desta vez, viriam não do Brasil, mas em sua maioria de Montevidéu, em ônibus que cortariam o interior do país com um fervor quase religioso. Mais de duas décadas depois, os melenses pintaram as arquibancadas, arrumaram as telas, reformaram os vestiários e as entradas do Estádio Municipal Arquitecto Ubilla. Pela primeira vez na história, o Cerro Largo, única equipe do interior uruguaio na primeira divisão, enfrentaria o Peñarol, atual vice-campeão da América, em Melo.

É evidente que comparar a importância dos dois eventos para a cidade seria uma enorme distorção. Mas o que aconteceu no último domingo em Melo, de certa forma, se relaciona e se aproxima com a fugaz aparição do Papa em 1988. Principalmente porque foram inúmeros os entraves para levar a cabo a realização da partida mais importante do ano para o Cerro Largo – algo que, por direito, deveria ser natural e acontecer a cada torneio. Há anos, o que se vê nas tabelas do futebol uruguaio é exatamente o contrário de uma possível integração entre Montevidéu e o interior – quando chega a esperada oportunidade das equipes de tierra adentro receberem os dois grandes do futebol uruguaio, Peñarol e Nacional, a partida inevitavelmente é remarcada para o Estádio Centenário, da capital. Por vezes, os interioranos se beneficiam com a renda da partida em um palco maior e não arcam com as rígidas adaptações exigidas pelos cartolas nos estádios das pequenas cidades. A consequência inevitável é um distanciamento das torcidas do interior do país com o futebol profissional; hoje, apenas o Cerro Largo resiste na elite uruguaia.

Peñarol 0-0 Cerro Largo | Foto: El Observador

O enfrentamento entre Peñarol e Cerro Largo parecia terminar na mesma resignação; após inspeções do Ministério do Interior no estádio Arquitecto Ubilla, os diretores da equipe de Melo ouviram o valor das reformas: trezentos mil pesos uruguaios, cerca de trinta mil reais; o suficiente para o presidente do clube declarar que receber o Peñarol no município era de fato impossível. Entre as exigências para habilitar o estádio, estava incluído até mesmo o transporte dos cavalos crioulos utilizados pela polícia montada de Montevidéu; os equinos do interior não serviriam. Durante as negociações, cogitou-se até realizar o jogo apenas com a parcialidade local nas tribunas – para tanto, um pedágio impediria a chegada de torcedores sem ingresso a Melo nas horas anteriores ao jogo. Passaram-se os dias e as reformas do Arquitecto Ubilla surpreenderam os dirigentes; o investimento do Cerro Largou convenceu o governo e a Associación Uruguaya de Fútbol de que era possível jogar futebol normalmente por ali, inclusive com as duas torcidas presentes. Outra tarde de domingo, tanto tempo depois, voltou a mobilizar a cidade e deixar notar aquela “alegria sem necessidade de explicação” que Aldyr havia descrito.

Melo viveu uma tarde ensolarada e de alívio; na véspera, uma tormenta havia assustado todo o país e comprometido o estado do gramado. Se a chuva persistisse no domingo, era improvável que a partida fosse realizada. O trio de arbitragem ponderou se não haveria barro e poças demais ali para a prática do futebol. Então, valendo-se de um improviso dramático para que todo o esforço prévio não atolasse na lama do Estádio Municipal, funcionários secaram a parte mais prejudicada do campo com colchões velhos. O árbitro não ousou contestar. Em campo, depois de um zero a zero, foi possível perceber certas lamúrias do Peñarol sobre a grama alagada e alguma indignação dos arachanes, como são chamados os nascidos no departamento, com a arbitragem que anulou um gol e ainda deixou de assinalar um pênalti para os locais. Apesar das queixas tão comuns ao futebol, havia uma satisfação indisfarçável nas arquibancadas. A imprensa local falou em “dia histórico” e em Montevidéu se comentou sobre o bom nível da equipe azul e branca. Felizes, aliás, estavam os católicos e os ateus que lotaram o estádio local. Ao fim de tudo – tempo semelhante ao que João Paulo II passou na cidade – numerosos aplausos. Deve ter sido lindo de ver, porque Melo era uma festa.

Maurício Brum e Iuri Müller assinam, alternadamente, a coluna Futebol e Literatura todos os finais de semana no Sul21.


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